Bokurano
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Womb segunda parte

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Mensagem  Admin Sáb Set 18, 2010 4:50 am

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Palavras de Sidney:

Eu sou uma pessoa má. Eu menti pra você. Você não esperava uma mentira de mim. É pena que eu tenha mentido pra você dessa forma. Mas o que sinto por você é verdade. Antecipadamente vou dizendo que me prontifico em ser o pai de sua filha, o total oposto do sujeito que está mofando na prisão, em que pela primeira vez na vida se sentiu vítima de uma coisa, vítima da ira popular, todos pediam sua cabeça – e com razão – e eu estive observando tudo de longe, esperando a poeira baixar, lixando minhas unhas, esperando a poeira baixar com relativa tranqüilidade, pois chegar junto naquele momento significava a perda de tempo. Eu seria confundido por você com um dos aproveitadores de sempre, do tipo que arfa no seu cangote ávido em retirar um pouco de sua tristeza a alimentando com um pretenso carinho, um pretenso amor, sexo bem gostoso – o que possivelmente não seria o bastante para fazê-la esboçar um sorriso – e um papel de homem, bem mais homem que o homem que destruiu sua vida. Confesso que senti um pequeno nojo em presenciar todos aqueles abutres humanos beliscando cada naco de sua amargura, dos jornalistas – esta profissão maldita – até os fãs-instantâneos abastecidos pelo sentimentalismo barato, o papagaio de pirata sempre disposto a estar ao lado do fórum sistematicamente posto em um crucifixo improvisado em que cada lado havia um cartaz com o nome e fotos de sua filha, no auge de sua fofura e com nome e fotos da mãe adulta, desfrutando de uma felicidade efêmera, esmigalhada pela psicopatia perpetrada pelo ex-marido e sua nova mulher. A nova mulher que fazia tudo que este marido pedia, a nova mulher que em um arroubo de admiração o imitou até no desgosto que sentia pela enteada. Foi preciso esperar toda esta papagaiada se dispersar. Eu observei e analisei tudo enquanto ouvia Karina Buhr, pois não sou de ferro. Agora que finalmente tenho você em mãos, estirada na minha cama, completamente serena, em uma cena em que eu poderia parabenizar a mim mesmo por tê-la conquistado – não sendo uma mera conquista, visto que o desejo de permanecer em sua vida era genuíno – eu meto com a língua nos dentes, em um gesto repentino de auto destruição, e conto a verdade dizendo que menti. “Mas, em quê você mentiu?”, você me pergunta. Menti em diversas coisas. Mentir é próprio de minha personalidade, meu melhor amigo, minha filha e minha ex-mulher viveram matutando, tentando chegar a conclusão do porquê em utilizar a mentira. Uma fuga proposital da realidade? Uma prática única para se dar bem com tudo e todos? Ou simplesmente diversão? Mas mesmo assim, eu poderia fazer parte de sua vida, amor. Lembro que até agora você pergunta qual mentira contei e porquê estou enchendo seu saco com este monólogo imbecil. Eu sempre encho o saco das pessoas com monólogos imbecis e retrospectivas, é mais uma tática para fugir da verdade. Me desculpe, mamãe que me ensinou.

Mesmo tendo mentido o bastante durante toda minha existência, pessoas como Cristiano Mimizuki me fazem pensar o quão meus pecadilhos são pecadilhos. Rezo bastante para que ele recoloque sua vida nos trilhos, pois ele anda sofrendo demais, caramba. Alguém acenda uma, duas, três, trocentas velas para ele, pois o cabra precisa. Vamos lá, venha comigo. Toma aqui os fósforos, sim?

Palavras de Sidney: Fim

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Ele realmente não acreditou na possibilidade de ter que dormir tranqüilamente usando algum tipo de remédio. Após tanto tempo longe de calmantes e dos demais medicamentos considerava seu corpo limpo, desintoxicado e pronto para uma nova vivência e tinha tudo para seguir com normalidade desta vez. Tudo estava a seu favor. Tinha feito as pazes com seu melhor amigo, com sua mãe, seu trabalho como professor era reconhecido internacionalmente, tinha a fama em suas mãos, a boa fama, não a maldita fama que corroera pouco a pouco sua credibilidade em certos sites na internerd. Mas, quanto tempo havia se libertado da mesma internerd? 2, 3 anos? Sempre se achou um fracasso em relação a libertações pessoais, necessitava mais que ninguém de uma pessoa para dar a mãos e andar junto, até aí sem problema algum, pois qualquer pessoa poderia passar por isto. Deixou de choramingar, deixou de se lamentar e resolveu tocar a vida para a frente, conquistando os louros que tanto queria – no bom sentido – a dívida que segundo a si mesmo, tinha de ter sido paga por Deus há muito tempo. Ninguém merecia mais aqueles títulos que ele, é claro. Ninguém naquele país. Não conquistara tudo o que queria em sua vida, mas o suficiente para deixá-lo na plenitude. Quando finalmente se achou feliz, depois de tantos anos imerso na solidão e depressão, bateu algo em sua mente que o derrubou da cadeira, ou melhor, da cama em que estava deitado após um belo dia de trabalho. Seus cabelos corriam naturalmente sobre seus olhos, os dedos delicados acariciavam seu próprio rosto enquanto pensara no que tinha feito de errado para ser vítima de uma preocupação tão destruidora. Sentou na beira da cama, minutos depois não agüentou e levantou-se, rumando em direção a cozinha, onde tentou incluir sua aflição no mesmo rol onde vivia a fome. Comeu 2, 3 sanduíches franceses, daqueles bem recheados com tudo o que tem direito. E de que adiantou, se ainda era perturbado? É claro que tentou chegar a conclusão de que tudo o que se ganha não é de graça, e se você é presenteado com a felicidade – ou pelo menos parte dela – na vida, poderá ser presenteado por uma desgraça, uma crise encrustada em seu peito ou em sua mente, algo que o valha. Não estaria livre das aflições que cedo ou tarde povoariam sua cabeça, corroendo o interior tal qual um parasita esfaimado. Chegou a esta conclusão, mas só prestou para dizer mais uma vez que Deus é injusto. Algo tão incômodo quanto a coceira que sente no corpo ao ser atingido por raios solares repentinamente. Como sequer pensar em fazer parte de uma roda imensa de amigos. Precisava resolver esta questão de uma vez por todas. Seu maior desejo no momento era passar a próxima hora com uma pranchetinha estilo Joel Santana às mãos, planejando na melhor coisa a fazer, até ser interrompido pelos chamados de sua esposa. Esta mesma surpreendeu o abraçando fortemente por trás, como se quisesse esmagá-lo, pois tanto seus braços quanto o corpo gozavam em robustez. Tal prática o minimizava, ele não se achava homem ao ser preso – quase sempre carinhosamente – daquele jeito. “O que você está pensando? Achei que nunca mais se preocuparia com as coisas. Aprendeu a não se preocupar e amar a doença e tudo deu certo, porra. Faz tempo que não te vejo abatido dessa forma. Tá, nem vi seu rosto ainda, mas está cabisbaixo e isso já diz tudo, querido. Me diz o que está acontecendo”, disse a mulher, emitindo um sotaque carregado próprio dos marginais de plantão. O professor queria, mas não conseguia falar nada – não só pelo fato de detestar conversar pela manhã, especialmente logo após acordar. “Quero...refrescar um pouco a cabeça antes de falar ou tomar qualquer decisão errada”, disse ele. “Está quase na hora de me aprontar para a escola, vou tomar um banho”. “Mas, ainda faltam duas horas!” gritou a mulher, usando regatinha curtíssima – destacando seus seios fartos - “Sem contar que tá nevando, não acredito que você vai querer tomar banho no frio que está”. Mas, envolvido naquele tipo de pensamento, era capaz de tudo.

Como sua digníssima esposa dissera, nevava, mas bem pouco. O serviço de ferro carris circulava com certo atraso e como ele não poderia contar com o transporte público por ora, usou sua bicicleta vermelha, não tão rápida, porém, mas hábil. Deixou a mulher lamentando o fato de não tê-la beijado fervorosamente antes de partir para o trabalho, como sempre costumava fazer. Os lábios desta tremulavam, pois clamavam por um selinho que fosse e ele a deixou na mão em relação a isto pela primeira vez. Poderia utilizar de força para tirar do professor o que queria, mas não gostaria de dar má impressão. E ficou encostada na porta, emburrada e toda agasalhada. “Espero que este filho da puta não esteja me traindo”, pensou. “Se estiver, ele vai se foder de uma forma que nunca mais esquecerá na vida”. Bom, qualquer pessoa faria uma ameaça deste porte.

Chegou na escola em 30 minutos de pedalada, com pouca neve nas costas e muita nas rodas. Quase toda a via estava tomada e naquela situação era absolutamente normal passar por pessoas procurando as outras debaixo das crostas de gelo, crianças criando iglus improvisados e cachorros sendo congelados, pois quase sempre foram mais burros que os gatos – falando nisto, um gato da Ilha de Man, conhecido por não ter rabo, tinha o casal à sua disposição em casa. A cidade até sabia se cuidar perante uma tempestade de neve, ao contrário de uma chuva torrencial ou uma onda de calor acachapante. Sendo capital nacional e federal, utilizavam mais recursos e por uma tacada fenomenal e inédita do destino o Rio de Janeiro tinha um prefeito dedicado e apto a cuidar da pobreza extrema, uma promessa que se tornara realidade, inclusa em 50% de seu planejamento inicial. Acostumado a martelar na questão da educação desde o dia em que se candidatou pela primeira vez, o prefeito fizera uma pequena renovação no sistema educacional da cidade. Diminuiu em 25% o analfabetismo, etc e tal. O professor fazia parte de um dos profissionais ligados à elite, os famosos que alçaram a sua matéria específica – o Buhuwu – em um patamar digno, esta mesma fama que o fez retirar um sorriso sincero do rosto. No momento, não havia ninguém na escola além do porteiro. O professor poderia esperar lá fora ou pedir para entrar. Preferiu a segunda alternativa.

Adormeceu de testa na carteira até ser despertado pelos ruídos dos alunos, estes haviam chegado. Ainda tinha tempo para adentrar à cozinha e tomar um café – já que a cozinheira provavelmente também tinha dado as caras. A preocupação e a fome ainda atacavam seu estômago, e ele precisava de alguma coisa para colocar dentro. A gritaria infanto-juvenil o deixava mais vivo, amenizava seu estresse e lhe reforçava a vontade cada vez mais de passar o que aprendeu para aquelas pessoas. Por muito tempo não tinha o menor resquício de infelicidade, vivia completo, até aquele dia, entretanto, optou por não deixar transparecer sua tristeza para os demais funcionários e estudantes. Saiu ligeiro da sala de aula até dar de cara com uma das alunas, que o cumprimentou e queria saber de seu estado de saúde, pois parecia meio abatido, com cara de quem saiu derrotado desde a cama. Não soube responder além do básico “eu estou me sentindo bem, impressão sua que eu esteja mal”. Tantas crianças cortando seu caminho e lhe cumprimentando que colocou dentro de si o pensamento de que não deveria decepcioná-las. Saiu para fora, colocando os pés no campo de futebol instalado nos fundos da escola, repleto de neve. Só queria ficar sozinho, mas não desfrutaria deste prazer por muito tempo. O prazer naquele momento era olhar para o céu, e andar em torno daquele espaço, aguardando a hora de entrar em sala. Poderia fazer isto por mais 20 minutos se não chamassem seu nome, há poucos metros dali. Observou. Tratava-se da professora Eihi, com seu corte de cabelo longo e negro e o olhar de reprovação fixado em seu colega de trabalho. “Está pensando em brincar justamente há poucos minutos do início das aulas?”, perguntou ela, de braços cruzados. “Está sendo chamado pela diretora, sabe que ela detesta sair da sala nos dias frios, vamos, saia daí!”. Retirou-se da neve com certa rudeza, resmungando, enquanto Eihi mantinha os braços cruzados parada próximo à porta principal do campo. Chegou até ela e firmou seus olhos oblíquos naqueles olhos oblíquos, segurando-se para não baixar o nível, a desavença era clara, já discutiram anteriormente, ele pensava na melhor maneira para fazer as pazes, ela, não movendo uma palha para tentar mudar a situação, e ele já percebera que aparentemente qualquer tentativa de apaziguar a situação poderia ser falha, mas insistia. Apesar disto, a picuinha não figurava o rol de seus pequeninos aborrecimentos. “Você quer me dizer alguma coisa?”, perguntou ela, estática na frente do professor. Este mesmo teve a mente invadida por diversas idéias, abriu-se um leque de opções em sua cachola. O que poderia fazer para solucionar o problema, que crescia cada vez mais – ainda não a ponto do insuportável, mas poderia chegar lá – ? “Depois, eu cuido de você”, disparou secamente à professora, com direito à cara feia, o que provocou certo baque na mulher. Tremeu na base. Rumaram até a sala da diretoria, onde encontraram a chefe da casa estatelada em um colchão posto no chão, parte do corpo coberto por um edredon multicolorido, a mão direita em um pacote de Doritos e a esquerda sustentando o crânio. À sua frente, uma televisão de 24 polegadas sintonizada em um canal exclusivo de séries. Seu rosto redondo era coberto por parte de seus cabelos ensebados e seus seios caídos quase acabavam por sair de seu sutiã branco. Preguiça total, como era bem conhecida por todos os funcionários, incluindo o nissei, que mais uma vez sentira-se desconfortável ao observá-la naquela situação. Gostaria de ajudá-la, mas relembrou a demissão de um de seus melhores colegas de profissão, portando uma carga de altruísmo 100 vezes maior, do tipo que moveriam céus e terra para ajudar as pessoas, não se importando muito em ser ludibriados no processo. Mesmo sendo forrado em avisos para que não mexesse no dragão, resolveu ignorá-los solenemente, até ser despedido, sob a alegação da chefia de que estava atrapalhando o andamento da rotina de trabalho. Após este gesto de intolerância, todos os outros funcionários com uma pitada de solidariedade na veia calaram-se, não fizeram mais nada. Era rezar para que ninguém bancasse o idiota naqueles tempos. No momento atual, Cristiano mantinha o controle enquanto Eihi acompanhava tudo atrás dele, mantendo a postura séria e com os braços cruzados. A chefe da casa resolveu abrir a boca: “Bom-dia, pessoal. Eu passei o fim de semana inteiro pensando em falar com você, Cristiano. Está fazendo um excelente trabalho à frente destes alunos, nada melhor que ter em nossa folha de pagamento um profissional dedicado e premiado como você. Mas, elogios à parte, só quero comunicar que a partir de hoje você estará sendo promovido, mas claro, se você optar lecionar para as crianças. Só que não serão as mesmas crianças de sempre”. O professor fez uma expressão de dúvida, claramente não entendendo o que sua chefe tinha lhe dito. A professora entendera tudo e não movera um só músculo. “Só quero saber se aceita lecionar para 'os mesmos alunos', mas que não serão os que você conhece”, completou a mulher. O desejo dele era perguntar os mesmos alunos no qual ensinava Buhuwu tinham sido lobotomizados ou coisa parecida, pois qualquer pessoa entenderia que, pela forma dita, pareciam ter sido vítimas de lavagem cerebral, não tinha outra. Se sua colega de trabalho mantivera-se calada, é porque compreendera tudo o que tinha sido dito até agora, pois não emitiu um pio sequer. “Que tal me explicar isto direito? Pode ser um pouco mais clara, por favor”, perguntou ele, relaxando-se. “É simples, vá até sua sala e saberá exatamente do que estou falando”, respondeu a diretora. “Mas, antes, pode pegar esta caixa com pizza, por favor?”. Os dois colegas de trabalho avistaram há 2 metros dali, posta em uma pequena mesa redonda, uma caixa quente com pizza de calabresa, ainda intacta. Ambos voltaram a direcionar seus olhos no porte físico da dona da escola, em seu sedentarismo, sabendo que a pizza não apenas alimentaria sua pança, mas sim, sua preguiça e comodismo. Era certo de que não sairia debaixo do cobertor naquele dia. Pensando nisto, Cristiano pegou uma fatia da massa e colocou na boca, devorando em apenas duas bocadas. Sua chefe ficou boquiaberta, impressionada com a desobediência. “Antes que fale qualquer coisa, sabe que me deve essa”, disse ele, pondo as mãos em mais uma fatia gorda de pizza, pronto para colocar à boca mais uma vez, enquanto a mulher próxima a mantinha-se calada. Comeu mais uma fatia e com o que sobrou, colocou em sua mão direita e rumou para fora da sala. Fechou a porta.

Terminada a conversa, focou seus pensamentos à professora que andava logo atrás dele. “Já chega, preciso resolver isso de uma vez”, pensou, mordendo os lábios. Não lembrou-se de ter feito absolutamente nada que pudesse fazer nascer a picuinha entre os dois. Sempre foi um sujeito íntegro, correto e atencioso em todo o tempo em que lecionou naquela escola. Tinha em suas mãos a amizade incondicional das crianças e dos demais funcionários, dando-se bem com todos, mas porquê com Eihi, aquela oriental – como ele – extremamente séria e determinada a relação era tão difícil? Ele queria mais do que tudo melhorar a relação, poderia até engolir a teoria de que ela fosse daquele jeito com todos, mas isto fugia da verdade. A convivência entre os dois era diferente e naquele momento em que circulavam no corredor era oportuno o suficiente para colocar os pingos nos is. Cessou a caminhada e preparou-se para conversar com ela. “Er... eu sempre quis saber...por quê você me odeia tanto? Eu nunca te fiz nada de mais nesse tempo todo...”

- Acha realmente que o odeio? - perguntou ela, ferindo-o com uma olhadela de desprezo. - Eu entendo, é o que sempre parece. Quer que eu te peça desculpas?
- Você... está encarando a coisa toda como se fosse fácil resolver. Não estou fazendo tempestade em copo d'água, mas, passamos um bom tempo trabalhando juntos. Tudo bem, eu te desculpo, mas me considera inútil, uma pessoa que só está para atrapalhar seu caminho, para te perturbar? Vamos aproveitar o momento para resolvermos nossas diferenças de uma vez.
- Sinceramente, não o odeio – disparou a mulher. - Fique tranqüilo quanto a isto. Eu ajo do jeito que ajo contigo com todas as pessoas.
- Mentira – contestou ele. Pelo menos em matéria de dissimulação conhecia bem a pessoa à sua frente. Mas, era pouco. Eihi tratava-se de uma mulher misteriosa, até mesmo fora da escola. Tudo o que se conhecia sobre ela além de seus dados pessoais era que morava sozinha em alguma área serrana da cidade – que eram muitas – e que era formada também em Psicologia e Engenharia Química na cidade de São Paulo, em uma universidade particular. Falando nisto, detestava com todas as forças o sotaque paulistano, incluindo-os em seu repertório de piadas. Sim, por incrível que pareça, alimentava uma verve humorista, contando causos e anedotas para seus amigos, praticamente desconhecidos de qualquer funcionário do liceu. Como até os dinossauros sabiam ele detestava descendentes de japoneses e italianos. Falava bem pouco, fazia a maior parte das coisas que lhe pediam e portava um grande respeito no local, até mesmo maior que o da diretora, e não obstante, não gozava de um algo cargo, como ser braço direito da direção ou coisa parecida. Quase sempre recusava os convites para churrascos de colegas de trabalho, e quando participava, pouco falava, não dançava e quase não bebia, só comia muito, e na encolha, para não apagar sua imagem de blasé. Portanto, Eihi vestia uma aura de mistério que não só Cristiano, mas os outros funcionários também gostariam de despir. Uma tara. Era óbvio de que sentia-se muito bem entrando e saindo de locais subitamente, sem deixar rastros, falando o que tinha que falar, sem levantar a voz ou executar movimentos bruscos. Passava em todos os testes. A impressão maior era de que não estava nem aí para que o chorão à sua frente pensava sobre ela e que deveria agir com educação para as coisas não piorarem, mas quanto ao “mentira” dito por ele, sim. Estava mentindo.
- Ok. O que posso fazer para compensar este tempo em que estou te maltratando?
- Nós... poderíamos sair pra jantar algum dia destes – respondeu ele, meio nervoso. - Conheço um local especial, onde...
- Eu sou casada – disse, para espanto do homem. É, não sabia nada sobre ela além do que rolou por aí. Não sabia que tinha marido, certamente a maioria maciça dos demais funcionários também não sabiam. Até onde ela poderia surpreendê-lo com mais revelações? Nem aliança nos dedos tinha! Ah, certo de que poderia estar no dedão do pé...
- Casada? Com quem?
- Comigo, meu chapa – respondeu um homem, por ela. Aproximava-se dos dois com as mãos no bolso, o terno preto reluzente e os sapatos barulhentos. Sua fuça saindo das sombras do corredor revelou-se uma pessoa bastante familiar do “professor perfeito” à sua frente: era seu melhor amigo, Sidney Silvestre. - Ei, você está assustado, empalideceu assim tão rápido, rapaz... o que aconteceu?
- O-o que aconteceu? - perguntou o nissei, explicitamente surpreso. - Sid, você realmente está casado com ela? E... o que está fazendo aqui, na minha escola?
- “Minha escola”? Huehehe. Tá bom, você e Eihi praticamente mandam aqui, é compreensível – disse o homem, alto, forte, mulato e de cabelos bem negros e ondulados. - Respondendo à sua pergunta, eu e ela somos esposos há mais de 3 anos, todavia é compreensível também que você não esteja inteirado de toda a situação.
- E não estou inteirado mesmo – reforçou Cristiano, observando Sidney abraçar a mulher com naturalidade. - Pensei que você estivesse noivo de...
- Outra pessoa? - completou a professora, lançando-lhe um olhar arrogante. - Você não me conhece e não conhece seu próprio amigo, que deprimente. Neste tempo todo em que esteve viajando por aí, recebendo seus prêmios e citações, deixou de olhar os acontecimentos ocorridos com seus próprios amigos. Antes que pergunte como conhecemos, eu compareci à premiação dos Profissionais do Ano do semestre passado, falei contigo e você não deu bola. Sid veio minutos depois e puxei conversa com ele.
- Mas... quer dizer que... - recordava do momento com extrema clareza. No festival, aguardava uma outra pessoa, e no auge de sua anti-socialização não dera bola para qualquer conversa que não fosse a da menina que minutos depois, o descreveria com ironia e sarcasmo carregados no discurso para os mais poderosos da educação brasileira. Recordou que a sua atual colega era nada mais, nada menos que uma pessoa qualquer, na pior das hipóteses uma putinha ávida em arrumar um bom ganho naquela noite. Redirecionando sua mente ao presente, arrependeu-se amargamente de ter dispensado a pessoa que poderia fazer uma diferença em sua vida, no ramo sentimental. Recompôs-se, mudando o assunto. - Sidney, você sabe que agora não é o momento apropriado para visitas.
- Eu sei disso, mas você tá falando com seu aluno, não com um visitante – disse o homem, deixando o amigo ainda mais boquiaberto. - Vem comigo, tem um monte de pessoas ansiosas para aprender Buhuwu com você. - e tinha, de fato. Cristiano Mamiya adentrou à sua velha sala de aula e deparou-se com rostos tão conhecidos quanto o do colega indiano: a filha inglesa deste mesmo colega, Bonnie. A jovem Kristya, pai e mãe, a irmã mais nova Bom, a amiga roqueira Elizabeth, além de seu mestre. Ele mesmo se encontrou entre os alunos, representado por um Cris mais “solto”, com calça folgada, regata preta, cabelos longos, usando pulseiras infantis das mais diversas cores, além de um sorriso psicopata no rosto limpo, assustando o professor original, que rapidamente fora segurado por Sidney. - Você ainda tem muito a nos ensinar, rapaz, e pensar que passara um bom tempo dependente das pessoas, um zero à esquerda como ninguém e hoje, passou por isto tudo, tornando-se um cara normal...
- O que vocês estão fazendo? Por quê diabos estou vendo uma versão de mim entre os meus conhecidos, entre sua filha...o que está havendo aqui, cacete? - perguntou ele, bradando e babando.
- Fica calmo, ou tudo vai piorar dessa forma – respondeu o amigo, ferozmente, o intimidando com facilidade.
- Viu como é? Ele não tem nada pra ensinar a ninguém, amor – disse Eihi, mordendo os dentes. - Ainda continua medroso como sempre. Viu como ele ficou pianinho depois que você o olhou feio? Nós todos estamos querendo mudar e ele me vem fazer um papelão destes...
- Sempre foi um covarde, desde criança. A doença contribuiu pra que agisse como uma bichinha – complementou o indiano, provocando uma ira crescente no nissei, ainda segurado no braço por ele.
- Do que você está falando?
- Do óbvio. A doença te deixou assim, uma bicha. Por causa da doença você ainda se mantém preso dentro de si como um animalzinho de merda, não tem autonomia o suficiente pra melhorar a própria saúde mental por isso. Não ama ninguém e nem a si mesmo. Acha que tá feliz, mas não tá. Continua sofrendo por dentro – Sidney foi dizendo, enquanto Cristiano enfurecia-se cada vez mais, pelo constrangimento de estar sendo dissecado na frente de todos e pelo outro estar falando a verdade - , a doença te impede até de transar. Há quanto tempo você não transa, hein? 10 anos? 20, 30? Se eu consegui superar a merda da doença você também pode, mas não quer, pois é fraco demais, é um bosta. Um bosta que fica batendo punheta pra desenho animado, pra desenho em papel.
- Cala a boca, cara. Pára de falar besteira!
- Sabe o que ele me disse, há um tempo atrás? Que queria voltar pro Japão pra casar com a dubladora preferida dele. Qual é o nome dela mesmo? Ogata Megumi, é isso? Aquela feia pra caralho que tem uma cara redonda. Isso é, se ele não casar primeiro com o traveco no qual é apaixonado, o Bou daquela banda emo chamada AntiCafe, huehehe! Sério, eu não acredito que tá apaixonado por um travesti, cara – todos os presentes na aula riam baixinho, como se segurassem para o melhor. O professor fitara a imagem próxima à da ruiva Bonnie: tratava-se do próprio Bou, guitarrista da banda AntiCafe, pondo as mãos à boca, tentando prender a crise de riso.
- Cala a boca... cala a boca...
- Olha, vocês vêem como o sujeito é ingrato. É bem criado por papai e mamãe e vira viado! É mole, isso? Mas como deve ser pra ele transar com alguém se não pode chegar ao orgasmo? Ah, ao menos ele deve chupar que é uma beleza, alguma coisa boa ele tem que fazer.
- CALA A BOCA, FILHO DA PUTA! - gritou Cristiano, enchendo um soco bem dado no rosto de Sidney, que mesmo assim sustentou seu corpo após o impacto. Tão logo a reação violenta, Cris voou para cima dele, enfim, o derrubando no chão, sob os gritos estimulantes de todos os presentes na sala, especialmente de Eihi, que ria como ninguém e batia palmas para a briga formada. O derrubado não reagia enquanto era socado repetidamente pelo ofendido, que espumava como um cão raivoso. Seus olhos ruborizavam – VOCÊ NÃO É NINGUÉM NESSA MERDA DE VIDA PRA ME DEPRECIAR DESSE JEITO, DESGRAÇADO! SEU MULHERENGO, CUZÃO, OMISSO FILHO DA PUTA! SEMPRE QUIS ACABAR COMIGO ASSIM, NÉ, VIADO? SEMPRE QUIS, NÉ? SEMPRE QUIS! VAMPIRO DE MERDA! VAMPIRO DE MERDA! VOCÊ E A SUA FILHA SANGUESSUGA! DOIS SANGUESSUGAS E ASSASSINOS!
- Nem com a raiva posso ser ensinado por você? - perguntou o homem, reagindo ao pegá-lo pelos dedos da mão direita, torcendo-os, e com isso lhe conferindo uma dor imensa, o deixando de joelhos e logo após, o deitou de costas no chão ao desferir um chute certeiro na cabeça, na altura da nuca. Todos os “alunos” levantaram-se e fitaram o professor estatelado no chão, pronto para dormir. Sidney levantou-se por completo – Você é um fracasso em todos os sentidos. E isso independe da doença.

Foi o suficiente.


Última edição por Admin em Seg Nov 29, 2010 10:25 pm, editado 1 vez(es)
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Mensagem  Admin Sáb Set 18, 2010 5:32 am

“Que emo do caralho”, resmungaram. Nada como uma voz feminina que assemelhava-se mais a um grunhido, há 2 metros do leito onde Cristiano Mamiya repousava. Mal acordara de um tremendo pesadelo, já teve de engolir um comentário recheado de desprezo vindo de uma enfermeira, uma robusta e loura enfermeira de uniforme azul bebê que cuidava de suas coisas – sua mochila de viagem azul e branca, além de seus calçados, tênis surrados, mas recém-lavados. Pelo menos era isto o que ocorreria, pois segundo ao que assistia no canto do olho segundos após cessar o sofrimento psíquico, parecia que ela estava mais revirando seus pertences que os arrumando, um gesto um tanto incomum vindo de uma profissional de saúde que deveria cuidar bem do paciente e de suas coisas. Mas, o que fazer para repreendê-la? A voz não saía – sussurros praticamente ensurdecedores não significavam qualquer resquício de voz audível – e seu corpo ainda vivia imerso na paralisação, se acostumando com o estado iniciado há alguns diazinhos atrás. Sim, pois é claro, ocorreu alguma coisa para ele estar deitado no leito de um hospital. Dã. Troféu Gênio do Ano. Terminado o fuça-fuça promovido pela funcionária, esta mesma pegou um caderninho rosa espiral descansado em cima do criado mudo do pequeno quarto e o recolocou na mochila, pois o item havia saído dali. Não demorou muito para o nissei recordar do conteúdo. Era seu diário, era onde relatava desde suas agruras sentimentais, profissionais e mais alguns “ais” até suas aventuras planejadas em locais inóspitos, isolados – florestas, dunas – e outros nem tanto – praias, shows de bandas independentes e encontros de comunidades interneteiras de relacionamento. Também tinha um blog em sua autoria, muito visitado e pouco comentado, para sua tristeza. Mantinha o diário para anotações pessoais, bem pessoais, do tipo que não seria louco e masoquista o suficiente para escrever em um blog, pois sabia que poderia voltar contra sua pessoa. Juntou o tico e o teco e concluiu que a enfermeira havia lido seu precioso diário e a frase “que emo do caralho” aplicava-se diretamente ao camarada. Novamente nos perguntamos, o que fazer para repreendê-la? Ele não passara tanto tempo deitado assim, mas não sabia em qual dia estava, em qual hora e em qual local da cidade, isso é, se ainda estivesse no Rio de Janeiro, mas sabia como e porquê foi parar ali. Tico e teco agiam frenéticos naquele momento.

Recordou que para espairecer e chegar à “perfeição mental” isolou-se pela enésima vez da civilização carioca, dando as caras na Floresta da Tijuca, a maior floresta urbana do mundo, situada ainda no município do Rio de Janeiro, frequentada por ripongas, aventureiros ou simplesmente por pessoas aptas a fazer um churrasco. Um local severamente desmatado por conta das plantações de café trazidas à cidade na primeira metade do século XIX, reflorestado a partir de 1861 à mando do imperador e ressurgindo como parque nos anos 1940. Perfeito para o professor sumir do convívio humano – e ele já sumira propositalmente na floresta por alguns dias, a ponto de ser procurado por bombeiros e guardas florestais – não necessitando sair fora da cidade para isolar-se. Recordou ainda mais nesta última vez em que adentrou ao lugar, em seu último encontro a si mesmo no Pico da Tijuca, ponto culminante do parque. Emulou uma companhia imaginária na qual invocava e fazia desaparecer desde os 20 e tantos anos – uma adolescente britânica de 18 anos ruiva de farmácia e com pele pálida chamada Emily – e aproveitando-se da solidão total no pico, tratou de beijar e abraçar sua “companheira”. E em uma das roladas que protagonizou, derrapou o corpo em uma das superfícies íngremes do pico, despencando a uma altura de 300 metros até prender-se em uma grossa árvore. Foi aí que, com sua demora, os guardas foram novamente à sua procura e não o acharam, após 6 horas de varredura. Havia um ferimento profundo na altura da nuca, que poderia levá-lo a óbito. Sorte dele que não aconteceu. Quem o encontrou desacordado, fraturado e crivado de picadas de insetos foram os índios tamoios – moradores da floresta. “Sorte que não caiu do platô, mas mesmo assim, estamos impressionados por sair-se com vida disso”, disseram os indígenas. E com isto, fora obviamente hospitalizado.

Observava a paisagem pela janela e tentava decifrar o nome da localidade onde estava. Não chegava a lugar nenhum, visto que não conseguia olhar além de altas mangueiras, a brisa acariciando as mesmas, o clima nublado e montanhas incrementando aquela pintura viva. Ah, as montanhas, ele as conhecia bem, poderia localizar-se com elas pela cidade, mas as instaladas ali denunciavam que ele estava descansando em algum bairro da Zona Norte, talvez. Nenhuma montanha característica do Parque Nacional da Tijuca, apenas montanhas possivelmente mexidas pelo homem: árvores alinhadas verde escuras e vegetação rasteira verde clara, criando uma espécie de listra na superfície. Bairro de Sampaio? Riachuelo? Era só perguntar a qualquer médico em qual bairro estava, mas o corpo não obedecia. Porra, permanecia tanto tempo acamado assim? A vontade de criar alguma barulheira para chamar a atenção era tanta que após certo esforço dera uma porrada – um soco – no criado mudo, fazendo derrubar sua mochila de viagem. Não havia ninguém visível naquele momento, mas pensava que pelo menos uma mosca apareceria depois de tudo aquilo. Queria porque queria levantar-se, morria de sede e de fome, sentia-se como se estivesse imprensado por 5 tetudos em um “montinho”, o animal dentro e fora de si debatia-se em fúria crescente. Alguém teria de ouvi-lo. “Ei, o que você está fazendo?”, perguntou uma enfermeira magrela e de olhos imensamente azuis, surgindo repentinamente. “O senhor ainda está em recuperação, não pense em sair da cama por enquanto!”. Percebeu com rapidez que sua recomendação – colocada mais como imposição, embora embutida na preocupação – não servia de nada para ele no momento, queria sair fora dali, ao menos levantar ou sentar na cama, deitado sentia que seu corpo envelhecia da forma mais desagradável possível. O sofrimento era uma constante em sua vida, agora, sofrer deitado já era demais, porra. Conseguiu mover seus dois braços, segurando a mirrada enfermeira pelos cotovelos, ela não poderia mais impedi-lo. Moveu os dois pés com grande esforço, tendo sucesso em mover o pé direito para fora do leito, o deixando no chão. A mulher não gritava, apenas dizia em tom normal para que não lutasse contra o remédio que lhe fora ministrado. É isso, o tal remédio – certamente injetado – relaxou seu corpo, era quase certo de que tombaria no chão se saísse do leito naquela hora e claro, seria posto novamente ali. Logo, parou de revoltar-se contra quem queria ajudá-lo. Os ferimentos já estavam curando, em 1 ou 2 dias poderia sair do hospital pela porta da frente como todo mundo, e sem fugas pretensas fugas dignas de filmes de Hollywood. Calma, cocada. “Ah, isso, bom menino”, sussurrou a mulher, percebendo seu paciente se acalmar. Voltou à cama, mas não na mesma posição de sempre. “Entendo, você não aguentava mais ficar de barriga pra cima e com as pernas imóveis o tempo todo, né? Está conseguindo se mover melhor, então?”, perguntou a ele, que respondeu mexendo os membros, mesmo que com certa dificuldade. Mas, ainda não conseguia emitir nada de sua boca além de guinchos semelhantes ao porquinho que ele criava quando criança. Claro, sentiu-se impotente por isso. “Não se preocupe com a voz, em dois dias o senhor provavelmente receberá alta, procure ficar calmo. Ah, conversarei sobre sua situação com o médico, direi que está sentindo-se melhor, certo?”, disse ela, sorrindo de um jeito sincero. Oh, ele não se surpreenderia se ela dissesse o contrário para o médico, visto que desde criança recebia o conselho de que não poderia confiar em enfermeiras, tão espertas quanto raposas. Teve de lidar com uma que mexeu em suas coisas e leu seu diário, e agora uma que poderia enganá-lo, como uma raposa engana uma galinha, só de pensar sobre isto sentiu-se mais impotente ainda, oh céus. Talvez seja um dos piores momentos de sua vida, e olhe que houveram momentos péssimos, o sujeito era nada mais que um pobre diabo, detentor de um histórico sofredor invejável – mas quem invejaria o sofrimento alheio...? - e de uma personalidade instável.

“Não estou surpreso em ser vítima deste pesadelo filho da puta... nem ao menos quando durmo consigo ter paz. Enfim, mesmo se morresse naquela queda eu não poderia ter paz, parece que este é um desejo impossível para mim, justo eu, que costumo correr atrás das coisas boas, nas quais mereço por direito e que sabe-se lá o quê vindo lá de cima não poderia me dar. Me sinto mal até mesmo em pensar, por quê estas coisas acontecem comigo, se não valho absurdamente nada a não ser para mim mesmo? O que eu não quero é dar a impressão de que estou sendo clichê reclamando da vida – quando na verdade, tenho muito mais disso para reclamar - , mas o que fazer para estancar este maldito câncer que assola sobre minha situação? A partir de agora eu teria de ser o sujeito mais cuidadoso do mundo, ainda mais cuidadoso que nos dias de chuva, onde tenho medo de tropeçar, cair no chão e me ferir. Creio que seria ainda mais doloroso estar estirado no chão em um dia chuvoso que ao receber a luz do sol, não entendo porque penso tanto sobre estas coisas inúteis e que ninguém se importaria...talvez por estar farto da vida e estar procurando o bem estar de teimoso, sabendo que raramente poderia me surpreender, mas só me surpreendo com as coisas ruins, é um fato. Agora estou aqui, preso na cama e dependendo de uma ladra para sobreviver. Eu já banco o coitadinho o bastante para as mulheres que encontro na internerd, exponho toda a minha vida, o suficiente para que elas digam 'ah, tá', ou 'legal', e quando fazem isso me vez uma vontade imensa de matar estas desgraças se estivessem na minha frente. Provavelmente, o motivo de minha sorte ser tão abreviada é o fato de que não consigo ser 'normal' o suficiente para viver. Para viver bem e gozar de boa saúde mental, é preciso desapegar-se de preocupações psicológicas, é preciso deixar de se encucar tanto, é preciso parar de ser vítima do existencialismo, que como um piolho insiste em sugar nosso sangue. Sei que não sou o único a quebrar a cabeça por conta disto e também não sou o único a me revirar todos os dias em minha cama, aflito e posteriormente tristonho em ter olhado para trás e entendido que não fiz nada de útil no dia além de andar no mesmo lugar o tempo todo. Não mereço a amargura, que anda de mãos dadas com a depressão, com os traumas – que vêm desde uma discussão até uma ira proveniente de uma desavença que carrego há tempos – e com a solidão. Eu seria um depressivo feliz se pelo menos tivesse alguém com quem dormir e transar todos os dias. Certo que não suportaria todos os dias, tem dias em que chego morto de cansaço em casa, mas companhia é muito bom. O pouco que gostei, adorei e como um viciado por heroína, quero mais, ao mesmo tempo em que necessito me desligar da convivência social – fora as relações em ambiente de trabalho, porque 'dá dinheiro' - , já que não preciso das pessoas além do básico. Ao mesmo tempo em que desejo morrer eu desejo viver, para desfrutar de pelo menos 50% do que almejo. Deus, se existe, não pode ser tão ruim comigo. 'Ah, mas ele te mantém vivo, como ele pode ser ruim contigo?', vocês poderiam perguntar. Acho uma obrigação. Estou correndo atrás de minhas coisas. Me recuso a pensar que Deus, se existe, esteja observando minha vida no maior estilo Big Brother, sem fazer nada além de complicar ainda mais minha situação. Se é tirano, não poderá fazer nada se começar a agir como Ele. Está na hora de me dar as coisas boas que preciso, meu velho”.

Pensou ainda mais sobre seu sonho, nos momentos em que fora protagonista. Ao contrário do que qualquer pessoa poderia achar, não achou-se horrorizado – ou algo mais próximo disso – em ter de encrencar com seu melhor amigo, mas certamente não o faria em uma situação impossível como a relatada em sua mente. Algumas vezes achava seu eu nos sonhos bem mais sortudo que o seu eu verdadeiro. Seu “gêmeo” participava de aventuras eróticas – em que algumas vezes, encoxava e transava com diversas mulheres - , voava como Superman, flutuava, ficava invisível, entre outras façanhas. Nunca abria a boca para falar alguma coisa, sua voz vinha do pensamento. Sua maior aflição, o que matava sua existência nestes episódios eram as cócegas que recebia, cócegas que machucavam e o enfraqueciam. Retirava-se dos sonhos a partir do momento em que alguém preparava-se para desferir-lhe as cócegas, e sabe-se lá porquê não conseguia lutar com as pessoas, apenas fugir, e isso tornou-se uma constante em suas aventuras oníricas. Ok, prontificou-se em fugir nos sonhos e lutar no mundo real e vencer no mundo real poderia ser tão gratificante que sobrepujaria qualquer fracasso cometido em sonhos, tinha a certeza disto. E o que fazer para vencer no mundo real se falhava em 80%? O que seriam estes 20% restantes? “Casa”. Só isso? Mas, ele não trabalhava e ainda não suportaria a ideia de executar QUALQUER trabalho em troca do sustento contínuo. Não tem mais? “Relações amigáveis com algumas pessoas... da internerd!”. Mas, isso praticamente é menos que nada, não? A maior parte de seu pequeno leque de amigos eram meninas, mulheres, algo que não ultrapassava o “tipo assim” típico das adolescentes até o “você está sendo grosso” das mulheres maduras ou nem tão maduras assim. E segundo ele, era considerado grosso não sendo grosso, o que o aborrecia imensamente. O que elas poderiam fazer para ajudá-lo, além dos conselhos batidos de sempre como “Não fique assim, Deus vai te ajudar”? A rápida retrospectiva de relacionamentos interneteiros o complicou cada vez mais, decidiu-se resolver as coisas por si mesmo, pois as mulheres seriam inúteis. A primeira coisa a fazer seria retirar-se do hospital, voltar para casa e preparar-se para o prêmio Profissionais do Ano, previsto para ser realizado... ele nem mesmo tinha noção da data daquele dia. Chamou a enfermeira. A magrela apareceu para atendê-lo, mas lembrou-se de que não poderia conversar direito com ela, portanto, fez um esforço hercúleo para fazê-la entender o que queria. “Qual...qual é a data de hoje?”, perguntou. “Ah, a data. Estamos em primeiro de agosto”, respondeu ela, sorrindo abertamente. “Esqueci de dizer isso para o senhor, mas aproveitando o ensejo... o senhor poderia nos passar o endereço de qualquer conhecido seu, alguém que possa visitá-lo nestes poucos dias em que continuará aqui?”. Ele engoliu seco dizendo: “Não tenho ninguém. Meu amigo está na Índia, no Japão ou aqui e não... não volta tão cedo, moro sozinho. Mas, não dependo deles para sair daqui, não preciso deles. Eu... eu preciso levantar, meu corpo está coçando demais, minhas costas estão me matando, me tire daqui. Me tire daqui, por favor”. A mulher percebeu que não custava nada posicioná-lo de forma a deixá-lo mais confortável e deixou seu corpo meio de lado, onde ela foi perguntando onde formigava e ele respondendo. Logo, as coçadas proporcionadas pelas mãozinhas evoluíram para massagens, deixando o paciente bem relaxado. Ela sorria e considerava o momento e o ato divertido e poderia permanecer massageando-o o dia inteiro se pudesse. Cristiano recordou dos poucos momentos em que tinha sido acariciado alguém que não era a sua mãe ou sua irmã, o deixou levemente emocionado. Lembrou-se de que não fora tão deliciosamente massageado por sua efêmera namorada namibiana. Mas, esta emoção fora deixada de lado ao perceber estar sendo observado pela enfermeira corpulenta que o atendeu primeiro. Metade de seu corpo estava à mostra para ele, e seus enormes olhos aparentavam demonstrar um misto de constrangimento e decepção, como se estivesse consciente de que tinha sido uma má profissional e que se alguém descobrisse, poderia colocá-la no olho da rua. O que queria naquele momento? Pedir desculpas por ter mexido nas coisas de seu paciente? Cristiano pensava nisto e tinha a certeza de que poderia ser presenteado com a retratação daquela peituda, mas... ela sorriu e se retirou. Que falho. Ele quebrou a cara, e estava bem acostumado a isso. “E então, está se sentindo melhor?”, perguntou a magrela, sentindo-se mais útil do que nunca, além de saciar seu desejo alimentado há tempos em tocar no corpo de homens. “Está gostando?”. Foi só perguntar isto que o relaxamento inicial do nissei passou para excitação crescente, e exatamente lá embaixo. Quase sempre não perdia tempo em passar cantadas em qualquer mulher que lhe dirigisse a palavra – e que não lhe dirigisse a palavra, bastava estar próximo a ele para tal. Poderia incluí-la neste “modus operandi” sem o menor problema e seu físico o agradava: além dos já citados olhos azuis, seus seios pequenos e o cabelo longo e louro meio avermelhado o agradava, mas tinha focada em sua mente a imagem da corpulenta mulher, aparentemente disposta a pregar-lhe uma peça, nem que seja para desvencilhar-se do clima monótono do hospital. Poucos pacientes, ar condicionado fraco, aquela calmaria – reforçada com o movimento pífio de bondes na rua – irritava a menina. Era quase certo de que em sua mente tinha o pensamento de colocar aquele paciente como “bobo”, embora não tivesse experiência em encher o saco alheio no ambiente de trabalho, poderia lhe custar o emprego, é claro. Algo naquele homem a atraía, além da necessidade de permanecer à sombra dele enquanto estivesse ali. O sorriso demonstrava realmente a disposição em perturbá-lo naquele momento tão delicado? Não, não é possível. Ou sim, é possível. Se fosse esta segunda hipótese Cristiano estaria convencido de que ela estivesse atraída por ele, já que algumas pessoas demonstrariam sinais de atração e paixonite em ações como aquela e até quando teve suas coisas mexidas por ela. Ou não. Tudo isso poderia ser simples vontade de atormentá-lo, situação em que ele poderia controlar na palma da mão ao denunciá-la à direção, ocasionando uma advertência, uma demissão... o prazer proporcionado pelas massagens quase passava despercebido perante os pensamentos relacionados à tal enfermeira fuxiqueira. Era certo de que não sairia do hospital sem resolver isto. Mas, por outro lado, a tentação em querer flertar com quem massageava suas costas insistia em cutucá-lo, mas considerou que seria perda de tempo conversar bastante até chegar ao que realmente queria saber. “Você...tem namorado?”, perguntou ele à enfermeira magrela. “Sim, ficaremos noivos na semana que vem”, respondeu prontamente e com sorriso aberto. “Por quê? Ah, desculpe massageá-lo tanto a ponto de pensar que...”, Cristiano rapidamente disse que não foi porque estava sendo massageado que aquela prática dava sinal verde para que tivessem um futuro relacionamento, e que não era um sujeito que se apaixonava fácil pelas pessoas. Tanto justificou-se que se atrapalhou, quase imergindo no constrangimento, não fosse os pedidos da mulher dizendo para não se preocupar. Retirou-se do quarto, sorrindo. Ele sabia que tratava-se de um sorriso falso do tipo “nunca mais tocarei nessa cara ou em qualquer outro homem, esses caras botam tudo no ‘buraco da maldade’ fácil, fácil”. Oh, descobriu o Brasil, a criatura.

Cristiano sentia-se melhor no dia seguinte. Seu braço direito estava engessado, mas nada que não pudesse tirá-lo do hospital. Pensou consigo mesmo que a alta seria concedida naquele dia, a maior parte de seus ferimentos sararam, colocando um ponto final “informal” em sua estada naquele lugar. Ele queria conversar com aquela enfermeira robusta antes de voltar para casa, mas não a encontrava em local algum, até porque, não era o dia de seu plantão, coisa que só pôde saber logo após o café da manhã. Sabia que mesmo vivenciando toda aquela situação ela ainda tinha alguma coisa para revelar, mostrou-se inconscientemente uma pessoa misteriosa, que poderia oferecer algo mais se mexida com mais afinco, uma coisa boa ou ruim, mas estava quase patente de que ela só daria problemas, era só lembrar do que já aconteceu no pouco tempo em que ele esteve ali. A magrelinha poderia fazê-lo sair do hospital com um sorriso no rosto, mas se afastara ao sentir-se constrangida com o início de flerte feito no dia anterior. Difícil tentar uma reaproximação, até porque não tinha aquela vontade genuína de fazê-la. Sua fixação agora tinha gordura corporal elevada, testa mui larga e gestos grosseiros. Mas, o que fazer se aparentemente a mulher não quisera nada com ele, nem mesmo uma conversação decente? Pagaria um mico se fosse procurá-la, apesar de estar bem acostumado em tomar iniciativa, se desdobrar e se ferrar por isto. Ou então, ele poderia voltar à magrelinha. Ou então, ele poderia deixá-las de lado e seguir sua vida sem mais uma preocupação em sua cabeça. Pensou por um momento que não necessitava daquilo, não precisava passar aquela vergonha, pois um dia arrumaria alguém, mas sua cabeça esquentava só de pensar em “um dia”, que tinha tanta valia em sua mente quanto o “quem sabe”, ou o “talvez”. Seu sentimento era de “oito ou oitenta”, seu organismo repelia o meio termo, o fazia sofrer bastante, lhe acrescentava dores na cabeça só de pensar. Tão nocivo quanto os conselhos clichês de que era “vítima” vez ou outra. E agia com grosseria para quem lhe desferia, e a ofendida não falava com ele, e este círculo vicioso não parava de girar, gira, gira, gira, e em poucos momentos pensou no quão estava errado em alimentar este tipo de coisa. Cristiano poderia acabar com seu dilema não procurando qualquer uma das duas mulheres, pois além delas (pelo menos aparentemente) não lhe oferecerem qualquer chance de flerte, ele flertaria era com a perda de tempo, tão comum em sua vida, mas tão comum que finalmente chegara a irritação. “Elas não valem à pena”, pensou consigo, esboçando um sorriso arrogante. “Daqui há 3 ou 4 dias esquecerei estas pessoas, logo, não tem porquê eu me penitenciar com uma coisa tosca como essa. Sidney, por mais imbecil que fosse, não agiria nessa forma nem daqui há 1000 anos”, concluiu, fazendo uma enésima comparação com seu querido miguxo. Recebendo a notícia de que poderia retornar para a casa, levantou feliz do leito, com as costas dormentes e o quadril doído de tanto permanecer deitado na mesma posição. A televisão do quarto mal funcionava – ainda que a magrela tivesse dito que iriam consertar no dia anterior à sua saída – , a despeito do ar-condicionado eternamente gélido. Cristiano tomou um banho bem rápido, vestiu roupas novas – um conjunto de calça e camisa vermelhas e blusa azul-bebê doadas pela própria instituição, já que as velhas foram rasgadas na queda – e tomou um café da manhã composto de chá vermelho gelado e sanduíche de sardinha e alface. A cada mordida, acrescentava em sua mente o desejo de mudar de vida, começando pela futura participação no prêmio Profissionais do Ano, tendo ciência de que sua vitória seria improvável. Nem ele acreditava em si mesmo. Para si, o festival seria apenas uma oportunidade para ganhar uma foto no jornal – onde ele faria uso da vontade pobre de recortá-la, escaneá-la e colocá-la em seu perfil do Orkut – e rever antigas amizades. “Foto com Cristiano Mamiya e amigos, entre eles uma bela morena de 23 anos, sua ex-aluna” e “Cristiano e Glória”, algo assim, para esfregar na cara dos outros que tem amigos e para não ser considerado perfil “fake” (impostor) por gente com perfil de 900 amigos e trocentas comunidades, entre elas do tipo “Eu odeio acordar cedo”, “VIPS”, “Gossip Girl” e variantes. Sentia-se bem naquelas roupas, o odor denunciava sua recém-saída da fábrica, além do quente proporcionado pelo ferro de passar. Ao sair do banheiro, fora abordado por uma outra enfermeira, lhe dando um bilhete: “Aqui tem o telefone dos índios que te salvaram, eles querem entrar em contato contigo pra ver se está tudo bem”, disse ela. Ora, mas por quê não o visitaram no hospital? Tudo bem, ele não tinha tenta vontade assim em vê-los, mas achara que o número de contatos em sua vida poderia conferir-lhe certas facilidades, provavelmente as relacionadas à ajuda material e emocional, como já tinha pensado antes. Há meses, quando saiu de Tóquio, embebia-se de pensamentos distintos.

Ao pegar suas coisas, pô-las às costas e rumar para a escada que levava ao térreo, fora abordado pelas profissionais que o atenderam, inclusive a magrelinha, pedindo desculpas por tratá-lo mal. “Tudo bem, não se preocupe”, respondeu ele, de sorriso amarelo, secretamente sentido com o que aconteceu. Perguntou pela outra enfermeira, a corpulenta, onde ela estava? “A Laura? Hoje não é o dia dela”, respondeu a massagista nas horas vagas. “Está querendo falar com ela?”. Não, ele estava querendo retirar um bicho do pé que ela pegou dele. Que coisa. Não tinha permissão de fornecer telefone de funcionários para pacientes, todavia, resolveu agir contra as regras pelo fato de ter lidado com um “japa de boa viagem”. Cedeu o número para ele em um papelzinho, sem que ninguém visse. Ele sorriu. Ela também. E seguiu-se mais um pedido de desculpas, um beijo no rosto e um abraço expressivo, no fim, despediram-se. Cristiano saiu mais leve do hospital, parcialmente satisfeito com o resultado, embora em certo momento tivesse pensado que sairia com as mãos abanando dali. Era certo e natural de que a mulher robusta perguntaria onde ele conseguiu o endereço – e talvez responderia à abordagem com violência – caso fosse encontrada pelo nissei em seu lar. Não poderia denunciar a mulher que lhe deu o bilhete. E aí, como resolveria isto? Achou melhor dar seu jeito quando fosse perguntado pela enfermeira por isto, pois baixara uma “preguicite aguda” de pensar que o impossibilitava comer pudim de leite e mingau de aveia ao mesmo tempo. As coisas andavam meio malucas. Ele tinha ouvido a banda MGMT umas duas vezes, cagado para o novo cd dos sujeitos – visto que Oracular Spectacular era de conteúdo bem mais profissional que uma emulação indie, tipo o famigerado segundo cd do Cansei de Ser Sexy - , não se cansando em ouvir “The Handshake” e “Weekend Wars” sempre que se mantivera triste. Achava incrível o quão o segundo cd da banda, “Congratulations” gritava “anti-profissionalismo!”, porque as músicas vinham em uma superfície tão suja que precisavam ser polidas urgentemente. Na verdade gritava “Não queremos implacar mais um hit!” Não aquela polida desnecessária do primeiro cd do CSS, na qual extirpou todo o clima “oldschool”, cru e divertido das músicas, mas uma senhora polida de arrebentar a boca do balão. O que servia para o MGMT não servia para o MGMT. Mas, por quê direcionar seus pensamentos à suas bandas preferidas se logo à frente ele tinha os peitões, o sotaque de baixa renda, a enorme testa e o corpo parrudo de uma mulher, sua futura namorada? Por um pequeno momento, pensamentos referentes à bandas foram postos no lixo e assim, tomou ciência de que teria de resolver a questão do encontro ainda naquela semana. Ele já tinha a liberdade, poderia voltar para casa e retomar seus afazeres. Emily desejava vê-lo o quanto antes, queria enchê-lo de beijos e abraços, sem contar o prazer preso dentro de si louco para ser liberto, só faltava a presença do nissei presentear aquela casa. Segundo ele, um bom motivo para voltar e ele o fez.

Sentira o ar frio acariciando por trás de suas orelhas, os dedos das mãos arroxeando facilmente, o bafo gelado em sua boca, passando do gosto de jiló ao gosto de pastilha de eucalipto. A impressão era que o tempo festejava sua saída, recheada por singelas despedidas, com a enfermeira magrela lhe desejando muitas felicidades – como servissem para alguma coisa – , Seus olhos aguçaram-se ao observar, há centenas de metros ali, a praia que aparentemente seria a de Botafogo, uma faixa de areia pequena e circular dando visão a Baía de Guabanara, ao Pão de Açúcar e aos poucos ciclistas circulando pelo local. Lembrara no dia em que quase afogara-se nas pedras daquela praia, na época em que iniciava seus mergulhos solo em praias do litoral carioca, época esta em que o dever de “provar” cada água dos cantos do Rio de Janeiro era tida como obrigação. Sabia desde a infância de que amargaria a solidão por um longo espaço de tempo, o que não quer dizer que teve sucesso em suas tentativas de preparação para o pior. Desejava em viver cada momento do sofrimento como se fosse único até que acostumou-se com as frustrações, como nenhuma outra pessoa se acostumara, considerava a hipótese de que o azar o amava e poderia muito bem personificar-se em uma figura feminina um dia. Achava-se derrotado demais para mudar? Mas, o quê iria mudar – segundo ele – se o azar insistia em pegar-lhe o pé como um persistente chulé? Não era o homem mais azarado do mundo, era só observar nos sites e fóruns de internerd o quão eram apinhados de perdedores piores que ele, ainda tinha salvação. Segundo ele mesmo, a salvação poderia começar quando sabe-se lá o quê aliviasse sua barra. Acostumou-se com as aflições, mas é claro, não desejava levá-las para o túmulo, não tinha intenção em ser considerado por si mesmo um sujeito “maldito”. Já estava na hora de mudar as coisas e aproveitou a retirada do hospital – com um braço engessado e curativos nos membros inferiores e superiores – para se empenhar na enésima tentativa em enlaçar a boa vivência, a sorte em sua vida. Já chega de todo este papo de merda. Chega, não? Não.

Nem seus passos lhe davam sensação de normalidade. Doíam. “Teria sido melhor não sair da cama”, pensou, como se não tivesse esse tipo de pensamento até quando gozava de boa saúde. Cambaleava mais do que andava e com certeza as enfermeiras notaram isso. Voltar para o hospital? Não, tinha saudades de casa, além de ter que visitar a suposta ladra, mesmo não tendo combinado nada. Resolveu deixar de lado o quente de sua residência para encontrar a mulher, dar logo um fim ao medo da rejeição, pelo menos teria tentado. Puxou o bilhete do bolso, memorizando o conteúdo: “Avenida Voluntários da Pátria, 1690”. Ah, essa avenida ficava ali mesmo em Botafogo, no mesmo bairro onde circulava naquela hora. O tempo ameaçava pular do frio para a chuva, pessoas começaram a apressar o passo, correr, ninguém tinha guarda chuva em mãos naquele momento. “Foda-se, eles são eles”, pensou esnobe, caminhando calmamente até o ponto do bonde, onde em 5 minutos tomou o veículo da linha Central-Gávea, apinhado de turistas. Não deu informação a nenhum deles, quando lhe perguntavam qual a melhor condução para chegar ao Jockey Clube. Aparentemente não sabiam que o mesmo Jockey seria desativado em 5 dias. Riu com a suposta desinformação dos turistas em relação a isto, desejava ardentemente o fracasso deles, assim, à toa. Além de paulistanos e descendentes de japoneses, detestava turistas.

Saiu do bonde há poucos metros da residência da moça, mas antes de seguir com a empreitada decidiu adentrar a um bar pé-sujo, daqueles em que os atendentes são barrigudos, vivem se coçando e têm um bigode semelhante a asas de morcego, com as asas deixadas de fora, não a espeluncas travestidas de boteco que pululam pelos bairros daquele lado do Rio. Cristiano verificou os alimentos na pequena vitrine abaixo do balcão, onde sempre são postos para esquentar: jilós, carne assada, frangos fritos e assados, batatinhas, carne-seca, peixes fritos, tudo constantemente esquentado para estarem prontos para o consumo a qualquer hora. Há tempos o nissei não desfrutava daquelas iguarias, parecia estar há meses trancafiado no hospital. Não metera na cabeça que precisava encher o bucho naquela hora – especialmente para pensar e ver no que estava se metendo ao aparecer na casa daquela mulher – , mas porque tinha fome mesmo. Pediu uma porção de carne assada e 2 copinhos de vinho tinto, ingerir álcool para se agarrar a uma coragem que normalmente não vivia com ele. Sentou-se em uma cadeira metálica e tentou relaxar. Sabia que não sairia 100% quando terminasse de comer. E em poucos minutos veio os comes e bebes, gradativamente seu semblante tenso deu lugar ao visível relaxamento quando comeu sossegadamente. A preocupação foi se despedindo de sua cabeça a ponto de tomar mais tempo no local, pedindo emprestado o jornal de um dos clientes. Logo, uma das notícias chamou sua atenção:

“JULGAMENTO SOBRE ASSASSINATO DE CRIANÇA TERMINA. CASAL SETENCIADO A 40 ANOS CADA. ANA CAROLINA DESEJA SUMIR DO MAPA”.

Ah, o tão alardeado julgamento sobre o casal acusado de esquartejar a filha. Ah, o sofrimento da mãe biológica da guria assassinada. Ah, os artigos relacionados ao ocorrido recheados de emoção. As pessoas esqueceram que precisavam ser imparciais até em crimes estarrecedores como este, estarrecedores – na opinião dele – , mas não merecedores da pieguice universal gerada inicialmente pela mídia, passada pela população, que não imbuída de personalidade própria agarra esta “convocação à guerra” com dedicação impressionante. Ele se achava melhor que a massa, pois estava blindado em relação a isto, nada relacionado ou a crimes semelhantes o deixava de pernas bambas. Como perceberam, enojava totalmente o sentimento do povo, verdadeiro juiz da situação. Mesmo se o casal assassino fosse inocente suas vidas já estariam destroçadas. Para completar o clichê, teve de ouvir os resmungos do homem que emprestou o jornal, com olhos arregalados e boca espumando ao falar do casal, praguejando contra os mesmos, desejando que estes sejam mortos na cadeia, que o pai que jogou a criança da janela de seu apartamento seja feito de “mocinha” no xilindró, entre otras cositas más. Toda esta reação pareceu bastante previsível para o remendado, logo, sua calmaria fora pelos ares, transformando-se em pressa, que manifestou ao comer e tomar o vinho com rapidez, ele não aguentava mais aquele falatório e não desejava agir com grosseria. Tinha ciência de que poderia dizer “eu posso comer sossegado, por favor? Não queria falar sobre o assunto” que o tagarela tomaria como uma espécie de grosseria. Qualquer resposta hoje em dia pode ser tomada como grosseria.

Terminando, tomou seu rumo deixando o homem falar, mantendo seu aborrecimento impagável sobre o crime mais falado do país. Cristiano voltou a seguir o endereço, vendo que a casa estava lá, mais ou menos um pequeno prédio de 3 andares em salmão e com as grades dianteiras forradas de trepadeiras. Ela devia viver bem naquele lugar, aprazível, canto de sabiás...o interfone parecia não funcionar, pois fora tocado umas duas vezes, sem resposta. Ué, talvez ela não poderia estar ali no momento. Bateu palmas, enquanto ainda mastigava o resto de carne assada. Uma pessoa saída do primeiro apartamento o atendeu: “Vim procurar pela Laura Socha, a senhora sabe se ela está em casa?”, perguntou ele, sério. “Ah, sim, provavelmente está, ela só sai à noite, hoje é dia de folga, então...espere aí que irei chamá-la para ti...”. Não se surpreendeu com a atitude de seu coração, batendo bem rápido, como se nunca tivesse procurado por uma mulher. Fora traído pelo seu próprio corpo, quando achava que uns goles de vinho e a barriga cheia poderiam segurar sua onda...”Ela já tá vindo”, disse a idosa de vestido rosa, xale branco e cabelos roxos. E então, como agiria?

Laura Socha surgiu em sua frente descalça, com camisa grande branca estampada com desenho animado e shortinho preto, deixando as pernas grossas e pálidas em evidência, sem vergonha nenhuma em permitir ser vista por um homem daquele jeito. Cristiano tremeu na base como nos tempos de adolescente, o que lhe fez sentir vergonha de si mesmo, pois não tinha cabimento agir assim às portas dos 40 anos de idade. Observou o rosto da mulher, de cabelos longos desgrenhados e sem maquiagem, obviamente à vontade em casa. “O que você veio fazer aqui?”, perguntou ela. Esqueceu que deveria trabalhar em um motivo para explicar sua presença, mas teve preguiça, certo? E então, o que veio fazer ali? “Vai me dizer que tá tão chapado de antibiótico que perdeu o caminho de casa, parando justamente na minha?”, reforçou ela, ainda séria. “Peraí, me deixa pensar num bom motivo, deixa eu me encolher aqui de vergonha primeiro”, era o que ele queria soltar de sua boca, mas concluiu que não seria coitado o suficiente para tal. Abriu: “Eu... queria agradecer a você por ter cuidado de mim daquele jeito. Gostei tanto de como me tratou que... vim aqui te parabenizar pessoalmente”. Estava quase certo de que em resposta diria algo como “ok, valeu, tchau”. Esperava por isto. “Ok, valeu, tchau”. Isso. Disse exatamente o que ele pensava. Tratou de mover-se para virar as costas e ir embora daquele lugar, até que fora chamado por ela. “Tá chuviscando e eu estou arrumando a casa, eu sei que talvez irei me arrepender disso, mas...entre para tomar um cafezinho, estou acabando de preparar. Sempre quis fazer cappuccino, o tanto de gente esnobe pra caralho lá no hospital que alardeia por aí que tomou isso, bebeu aquilo... tipo aquela minha colega de trabalho magrela que se deu bem contigo”, tagarelou, dando passe livre para recebê-lo em seu apartamento. Por um momento, Cristiano achou que o destino se encarregaria em deixá-lo seguir a mesma cartilha na qual estava acostumado, mas se surpreendeu, até deu umas risadinhas por dentro. Realmente, a chuva apertara, como se finalmente o destino, aquele safado, desse um jeitinho para trancafiar o engessado na casa de sua antiga enfermeira, forçando para que as coisas ocorressem.

Bom, depois dessa, ele poderia cessar um pouco suas blasfêmias.
Subiram uma pequena escada até o terceiro andar, com um corredor bem pequeno, uma bicicleta velha jogada no canto da parede e sacos com produtos de limpeza clamando para ser utilizados. Cristiano notou um líquido azul brotando embaixo da porta, nada mais que um detergente, evidenciando que o apartamento passava por uma faxina. Era só observar as feições levemente embrutecidas de Laura para entender que a guria gostava de deixar a casa em ordem. Por um momento, achou que fosse o contrário, pois seu corpo e rosto estavam besuntados de suor e cheiro forte de sabonete. A hipótese seria de que teria tido seu banho interrompido quando a vizinha a chamou...o nissei já pensara em pedir desculpas, mas segundo a segundo fora alimentado pela curiosidade em adentrar à vida de sua nova amiga. O momento pedia “faça hora à vontade, faça com que ela se apegue a você, mas não force a barra”. A auto confiança aumentava cada vez mais. “Não repara, não, ainda estou limpando”, avisou a mulher, abrindo a porta. A sala de estar na coloração rosa era composta de 2 sofás brancos e uma grande janela de metal e vidro com persianas quebradas, além de uma pequena mesa redonda bege com uma xícara no meio. Estante de madeira recheada de troféus, discos de vinil, vitrola e televisão de 14 polegadas. Já a parede, enfeitada com 2 quadros de congratulações e um – que o atraiu – com a foto da dona da casa, trancafiada em uma delegacia. Matutou consigo mesmo, tentando chegar a conclusão do que levou a enfermeira a emoldurar uma foto socialmente tenebrosa como aquela, colocando-a bem no meio da parede da sala de estar. O que queria provar com aquilo, além do aviso de que poderíamos estar lidando com uma pessoa perigosa? Claro que com isto, aparentemente pouco se lixava para rótulos...e era isso mesmo. “Não se preocupa com a foto, não tô nem aí pra quem for me julgar, todo mundo tem telhado de vidro, pessoal devia parar pra pensar e enfiar a hipocrisia no cu. Não há muita diferença entre um xingamento e um assassinato”, contou a mulher. Poderia concordar com ela, se fosse um evangélico, mas a banda não tocava dessa forma. A impressão era de que Laura tinha disposição em confrontar o mundo e os costumes alheios, fazer cada visitante romper barreiras...mas, sabe-se lá porquê não a observava como uma pessoa a perder tempo catequizando alguém. Vivia em seu mundinho, entretanto, quem adentrasse à sua casa, teria de agir conforme as regras. Está certo, é assim na casa de qualquer pessoa. “Pegue uma cadeira e sente no chão, já vou pegar o café. Pode ligar a televisão, se quiser”, disse, apressada. E ele foi, procurando uma superfície seca no chão e logo após ligou o aparelho. Tão logo foi trocando de canal percebera que a maior parte deles estavam bloqueados.

Sintonizava apenas um canal, mas não “o manjado de sempre”. Foi perguntar o motivo daquilo, quando quase fora atropelado pelas pernas grossas, derramando o café em cima de sua camisa, além de ter segurado a anfitriã no colo, impedindo-a de se chocar no chão. Cheirinho de armação, aquele ato, mas não. A expressão facial e timbre de voz de Laura patenteavam a sinceridade em preocupar-se com o visitante, além de pedi-lo para que tirasse a parte de cima da roupa, poderia lavar. “Foi mal mesmo, cara, me atrapalhei na sua perna”, lamentou ela, retirando a camisa dele antes de colocar no tanque para lavar. Sim, no tanque, pois resolveu se abster de comprar uma máquina – mesmo uma usada - , certamente economizando o salário para coisas ainda não reveladas.

Er... achei que você ganhava o suficiente para comprar uma máquina de lavar, nem que fosse uma usada – disse Cristiano, estranhando a situação. Praticamente todas as casas da Zona Sul carioca portavam uma.
- Vou mentir pra você agora: sacumé, eu prefiro lavar roupa no braço, assim como os meus pais. Daí, eu aproveito e tomo um banho ao mesmo tempo em que esfrego a roupa, mas claro, tomo cuidado pra não rasgá-la – respondeu ela, esboçando um sorriso desprezível enquanto enxaguava a camisa e passava sabão de coco. – Pode beber e comer qualquer coisa na geladeira, nem tive tempo de fazer comida.
- Sei... – o visitante passara os olhos ao redor, meio impressionado com o cubículo, mesmo situado em um dos endereços mais importantes do bairro. Andou até a cozinha e envergonhado, deu uma olhada na geladeira. Frios, carne e frango, muita manteiga, uma torta grande de limão cortada em 2 pedaços e frutas variadas. Foi observando tudo isso que nem imaginava exatamente o quão Laura recebia e o que fazia com a grana. – Sem querer ser indelicado, pode me responder quanto você recebe?
- Hahaha, e isso é pergunta que se faça? 1200 reais, mas e daí? – perguntou ela, mesmo entretida na lavação.
- Nada, não costumo ser curioso, mas não pude resistir... vou comer aqui na cozinha mesmo, certo? Melhor, vou te ajudar a terminar de lavar a sala de estar pra acabar logo com isso.
- Boa ideia, sou tão burrinha que não pensaria nisso tão cedo – respondeu, esfregando a camisa.

Ah, claro que iria se autodepreciar cedo ou tarde. Pessoas como ela carregavam nas costas uma tendência imensa à se alfinetar. Cristiano também pensara tarde demais sobre ajudá-la na faxina geral, colocando em si quase a mesma autodepreciação feita pela dona do lugar. “Eu deveria deixar de ser o 'homem que pensa depois', que idiota”. E desferiu uma pancada dada no peito para ficar mais esperto. Mesmo sendo uma pessoa grossa, era uma mulher, portanto, ajudá-la seria uma obrigação. Ambos não perceberam a hora passar, mal sabiam o horário de quando se viram na entrada do prédio. Só sabiam que chovia bastante, fomentando a sensação de preguiça vinda do visitante, que terminou sua última passada de pano no chão da sala. Nem suou, mas mesmo assim precisava de um banho, tanto quanto a mulher, que aproveitara o momento para lavar as meias de seu ex-paciente. Fitá-la de costas, balançando o quadril e a cintura enquanto esfregava o par de meias lhe proporcionava um prazer caseiro, além do prazer sexual crescente a cada momento. Ela dedicava-se tanto a lavar as coisas dele que parecia querer jogar alguma coisa dentro de si nas esfregações de roupa, alguma frustração, algo parecido. Olhar para aquela bundinha e aqueles coxões balançando dava um significado atualizado para “encoxar a mãe no tanque”, com a diferença de que não era a mãe que estava ali. Aproveitar-se do momento para abraçá-la ou tentar qualquer coisa mais ousada poderia lhe render uma porrada ainda mais danosa que o soco no peito, algo ainda pior. O jeito era se conter para descarregar na masturbação em casa, como sempre costumava fazer.

E conseguiu. Após toda a faxina, tomou banho, esperando Laura tomar o seu, sentadinho no sofá. Apareceu em 30 minutos, usando calça azul-clara e camisa rosa com estampa de ursinho. Certo que não descera bem aquela tentativa de parecer mais feminina.

“Parece que tem medo de mim”, disse ela, fitando-o. Cristiano diminuiu ainda mais o espaço em que estacionara suas pernas, intencionalmente, para permitir que o corpo grande de Laura dominasse o próprio sofá. Como tudo estava tinindo de limpo, ficou à vontade e ligou a televisão, perguntando para o visitante qual programa gostaria de assistir naquela tarde. Digo, naquele fim de tarde, pois ao observar o relógio de parede, o nissei entendeu que não poderia perder mais tempo ali, o festival Profissionais do Ano era hoje, às 20:00. Dali, partiria direto para casa, claro, se não engatasse um relacionamento amoroso com a anfitriã. Foi servido de café com leite e pão com carne, tomate e ovo frito, feito por ela, que não tirava os olhos do oriental. “Aposto que tem uma coisa que você queira perguntar. Errei?”.

- Queria saber o porquê de ter mexido nas minhas coisas enquanto estive acamado. – disse ele, sério. – Esperei o dia inteiro para te perguntar isso.
- Acredita que eu fiquei apaixonada pela sua bolsa de viagem? Ela é muito bonita e só agora tenho grana pra comprar uma parecida, quando eu despirocar por aí, quando eu estiver disposta a viajar nas minhas férias – respondeu ela, com aparente sinceridade. – Sério, depois achei que poderia encontrar algo tão bonito quanto ela, fui farejando tipo um sabujo dentro da sua bolsa e encontrei seu pequeno diário rosa, dei uma lida e achei seus relatos bem bacanas, mas ao mesmo tempo amargurados demais. Horrivelmente emocionais, e isso me dá repulsa. Por isso que disse “que emo do caralho”, porque sua história me enojou, mas ao mesmo tempo me atraiu. Eu iria entrar em contato contigo daqui há uns 2 dias.
- Eu imaginava que você me viesse com uma retratação e que pedisse desculpas – sussurrou ele, surpreso. – Nunca imaginei que você fosse se orgulhar da besteira que fez. Mexeu nas minhas coisas, leu meu diário e ainda achou legal?
- E por quê tu achas que eu detestaria? Pô, temos uma coisa parecida, detestamos clichê, mas comigo isso vem de forma tão verdadeira que achei que você gostasse também. Eu finalmente achei uma pessoa mais ou menos parecida comigo... só não imaginava que tu correrias atrás de mim, tinha cara de que não parecia gostar da fruta, hahaha!
- Eu gosto, e muito – disse ele, em nervosismo crescente, aproximando-se cada vez mais. – Mas, voltando ao assunto, achei que depois se arrependeria do que fez... porra. Vai me dizer que você age assim com qualquer paciente? Você estudou pra fuxicar o pertence alheio, cacete? – engrossou o caldo sem necessidade, no intuito de intimidá-la, por enquanto sem resultados visíveis em seu rosto. Ao observar seu visitante gesticulando aborrecido, “se crescendo” para cima da moça e ignorando os pedidos para que abraçasse a calmaria, Laura aplicou-lhe uma chave de braço, deixando-o de queixo no chão – literalmente – transferindo sua tranquilidade para o homem. Manjava da defesa pessoal, o incapacitando de levar a melhor antes mesmo de tocá-la, se é que iria tocá-la. Cristiano bafejou, e Laura relaxou a força segundo após segundo.
- Foi mal, eu costumo agir assim quando qualquer cara banca o machão – disse ela, com os peitos em cima da cabeça dele. – Cê já deve saber que eu sempre convivi com gente durona... bom, me desculpe.
- Tudo bem, meu melhor amigo adoraria ser subjugado por uma mulher assim – respondeu, aproveitando-se do momento para encostar sua costa no tórax da menina. – Mas, não desviando o assunto, fiquei surpreso por você ter se orgulhado de...
- Eu não disse que me orgulhei, rapá – corrigiu, alisando o braço doído dele. – Tu não me deixaste terminar tudo, quero dizer que estou em tratamento, mas não venha pensando que tenho alguma doença relacionada à roubos, como a cleptomania, essa “doença de rico”, apenas vivo seguindo com esta mania imbecil de fuxicar as coisas alheias, é só um reflexo de... experiências ruins. Não vai sentir pena de mim, né?
- Não... não mesmo – respondeu, sentando-se novamente no sofá. Sua companheira parecia estar disposta a acariciar a parte traumatizada de seu braço a noite inteira, se deixasse. – Se está realmente fazendo tratamento, ponto para ti. E deixa eu devolver as desculpas, pois eu também me aborreci com o que aconteceu lá no hospital e esperei terminarmos a faxina pra conversarmos sobre. E eu aceito suas desculpas, mas achei que fosse ladra.
- É mesmo, hahaha! Qualé, não chego a ser uma ladra, não. Tome seu café, não é melhor que um cappuccino, mas dá pro gasto. – Laura tomava um gole quando um ruído de telefone celular tocara dentro da bolsa de Cristiano, que apressou-se em verificar. Era uma mensagem de texto de sua amiga, Minzy: “EI, ESKECEU DO ENKONTRO P/ FESTIVAL? TOH NA ESTAÇAUM DE COPA XPERANDU, VEM LOGUUUUUU”. Seu contato adquirido na internerd, livre, leve e solto para levá-la a uma experiência deliciosa. Expliquemos sobre a guria:

Cristiano conhecera Minzy (obviamente, seu codinome) em uma sala de bate-papo, logo após retornar à casa da avó na praia do Russel. Após tanto ser vítima de enganação, com direito a marcar encontros, comparecer e esperar 3 horas achou que tanta atenção dada a ele vinda de uma menina teria futuramente o mesmo gosto da maldade e frustração como sentira por um bom tempo. E não era, mas só descobrira após esnobar as tentativas de socialização da menina – que se via realmente interessada no homem, mesmo sendo um amargurado muitos anos mais velho - , cedendo após uma conversa de 2 horas, praticamente ininterrupta, pelo MSN. A melhor química dividida com uma menina pela internerd, uma vitória que se solidificaria de verdade em um encontro e cá estamos: Minzy – ainda portando 50% de dependência paterna – aproveitara a ausência da mãe e sua lua de mel para fazer feliz o “amiguinho” que arrumara na grande rede, e como todos sabiam o professor facilmente direcionava a amizade interneteira para o real mais acentuadamente. O colocou na lista de “pessoas muuuito legais” no Orkut, mas sabia que tanto lá quanto no MSN o professor detestava spams, emails correntes e gifs de felicitações – estes últimos quase sempre distribuídos por ela. Também odiava ser puxado para conversar quase sempre, um homem mau humorado em quase todo o tempo, que além das conversas direcionava sua atenção aos filmes, séries e quadrinhos que baixava no computador. Minzy começara a significar uma pedra preciosa, um peso, brilho e valor de ouro em sua vida... e tinha ciência de que poderia se arrepender no futuro. E aí?

Deu um soco bem forte em seu peito – assustando Laura – , como punição de ter esquecido de uma pessoa que se importava com ele. Meteu o celular de volta na bolsa, dando sinais de que se preparava para ir embora.

- Tá saindo fora? Achei que fosse dormir aqui em casa – disse ela. – Huehe, tô brincando. Lembro que você tinha escrito no seu diário algo como...participar de um festival hoje, certo? Um festival grande, mas não tô muito inteirada da situação, mal vejo os canais que a maioria destes putos costumam assistir...
- Isso mesmo, fui um dos indicados para “Revelação do ano” e esse prêmio significa muito pra mim – explicou ele, pondo a bolsa nas costas. – Já estava me esquecendo e...você pretende deixar que eu durma aqui mesmo?
- E por quê não? – perguntou. – Não costumo ser assim com todos que passam por aqui, se bem que você é apenas o quarto deles, mas por um motivo imbecil gostei bem mais de você.
- Fale mais sobre estes 3.
- Agora não, querido, cê é afobado pra caramba quando te dão corda, hein? Huehehe. Puta merda. Vá lá no seu encontro, se quiser, pode dar uma passadinha aqui ainda hoje. Sei que vou me arrepender de dizer isso, mas...vai poder dormir aqui, estou tããão carente, hahaha!
- Não iria se arrepender, é mais fácil me decepcionarem que eu decepcionar alguém, bonzinho quase sempre se ferra – disse Cristiano, aproximando-se de Laura, baforejando há centímetros de seu rosto. – Se quiser, eu posso fazer parte do seu dia a dia, mas claro, taí uma oportunidade perfeita pra você dizer: “não tão rápido assim, vamos com calma. Sei que você tá tão necessitado, mas precisa ver o meu lado também”.
- Sério mesmo? Hum... mais ou menos, mas como um tá interessado no outro, vamos nos explorar. Me dá uma ligada quando você for voltar do teu festival – combinou ela, pedindo para que ele anotasse seu número no celular. O visitante clicava número após número com um sorriso tímido nos lábios, com a certeza de que engataria um relacionamento com a moça. Aparentemente, ela também queria, ou então, apenas estivesse disposta a brincar com seu coração, e ele, tão acostumado a passar por agruras relacionadas ao amor (lembrou de imediato a dispensa feita pela estudante namibiana), demonstrava sua pseudonovatice no assunto por seu sorriso, dando a impressão de que não adiantava nada adquirir experiência em relações mal-sucedidas se retornava ao status “cabaço” toda vez que acrescentava uma vitória (aparente) no quesito “encontro”. Segundos depois, caíra na real, verificando a situação com olhos clínicos e cérebro ligado, desconfiança a postos e observação à toda. Olhou para a enfermeira – que reagiu sorrindo com “o que foi?” – por alguns segundos, sério. O temor em ser enganado pela enésima vez por uma mulher fez seu coração bater mais forte. Com rapidez, Laura captou a mensagem e soltou: - Não se preocupa, não sou igual as outras.
- Tudo bem. 22:00 te ligo – concluiu ele, fechando a porta. E ela, esperando o beijo de despedida...

Cristiano desceu as escadas rapidamente e se situou em relação à sua localização. Conhecia bem a Zona Sul, mas não o bairro de Botafogo. Fora isso, não estava devidamente bem arrumado, um festival de peso como aquele pedia uma roupa decente, mas daria tempo para chegar em casa e se trocar? Talvez não, até porque nada parecido com uma roupa de gala ele tinha em sua residência. Usava a mesma roupa que recebera no hospital antes de sair, já que sua antiga – a que usara quando entrou no local – estava consideravelmente em trapos. Ou o público presente, incluindo seu mestre, o tacharia de esquisito ou de inovador, visto que seria um estranho no ninho propriamente dito. Ditaria moda? O tachamento maciço acrescentaria ainda mais em uma vitória na sua indicação. Receba o prêmio de “Revelação do ano”, seja obrigatoriamente fitado por todos, o que automaticamente colocaria seu rosto no centro de tudo. Não seria tão fácil desvencilhar-se dos futuros olhares de reprovação e estranhamento, se escondendo atiçaria mais ainda a curiosidade alheia, e detestava gente curiosa. Sua amiga Minzy poderia dar uma idéia antes mesmo que desse as caras na celebração, isso é, se a mesma poderia cessar as gargalhadas antes de mostrar sua opinião. Isso, tinha o prazer em antecipar as coisas antes mesmo de fazê-las acontecer, este homem. Pobre masoquista. Minzy o aguardava na estação de metrô de Copacabana, há dezenas de metros da praia. Cristiano tinha a certeza de que a garota estaria espumando de raiva por dentro, novamente não poderia se dar ao luxo de deixar correr pelas mãos os benefícios que um encontro como aquele proporcionaria. Recordando as diversas vezes em que papearam pelo MSN, Minzy sintetizava o espírito alegre e convidativo de uma menina tipicamente auto-astral, enquanto seu amigo muitos anos mais velho emanava o oposto. Como tinha um tesão enrustido em antecipar seus fracassos, o nissei já se preocupava com uma suposta imagem mal feita adquirida ao andar com uma adolescente, preocupava-se com o que as pessoas pensariam, etc e tal, e já comentou a situação com a menina, recebendo como resposta um banal “ninguém paga suas contas, pô!”, insuficiente para ele. Já pensara nas desculpas: “ela é filha da minha amiga”, “ela é a minha ex-aluna”, “ela é isso”, “ela é aquilo”, mas nunca “ela é minha peguete”, “ela é minha namorada”. Morria de medo que cabeças rolassem – a dele – por isso, esquecendo-se propositalmente que sua colega carregava 18 anos recém-formados e do corpinho de 16. Poderia receber o prêmio no conforto de sua casa, caso também não quisesse implorar para seu mestre uma nova admissão, já que amargava o desemprego há meses. Logo, levar a carcaça no festival era a melhor opção, sem contar que não gostaria de frustrar a menina tão cedo.


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Mensagem  Admin Sáb Set 18, 2010 7:10 pm

Tomou um bonde até a estação de metrô em Copa, a chuva não baixou e seu guarda chuva foi castigado pelo vento. Seus cabelos negros outrora penteados tomavam seus olhos, e para domá-los, sacou de um pente fino, jogando-os para trás da cabeça. Já se cansara de correr de poças d’água, deixou-se molhar, até descer as escadas da estação. Olhou os quiosques de guloseimas, olhou as bilheterias, olhou os grupinhos de meninas “indies”,com seus meiões listrados, tênis All Star e pouca gostosura. “Cadê ela, porra? Espero que não tenha vindo com uma roupa mui colorida, isso se realmente veio! Vai me dizer que fui enganado de novo?”. A aflição cessou quando fora abraçado por trás, com um queixinho em suas costas e mãos pálidas e bem cuidadas apertando seu peito.

- Achou que eu não viria, né? Fiz uma brincadeirinha com você, querido – Minzy disse, presenteando-o com uma vozinha altiva e aguda, e como já tinha mostrado no MSN, uma oriental de 1,60m de olhos exageradamente oblíquos e cabelos Chanel bem curtinhos. Vestia um terninho sem gravata preto igualmente curto e calça da mesma cor apertada, além de uma camisa azul e branca com estampa de caveira e sandálias salto-alto marrons. Pulseira grossa branca no braço esquerdo. Cílios postiços. Alegria sincera. – E então, tá tudo beleza contigo?
- É... está legal – respondeu ele, meio surpreso. 70% de sua mente já vivia imersa na condição de “será mais uma a te enganar, idiota”. Queria tocá-la, mas as mãozinhas da menina impediam a reciprocidade por viajarem no tórax do professor, deixando-o paralisado, assim, na frente de todos. Mal o encontrou e já acariciava toda a área de seu tórax e suas costas...ou deixava escancarado o prenúncio de uma possível safadeza ou tratava-se apenas de demonstração de alegria e apreço. A guria aparentava não manjar das putarias e apesar de todas as carícias poderia agir a um pedido de namoro com um “eu só te vejo como amigo”, “eu só te vejo como um irmão”, “pô, você é bem mais velho que eu, sempre achei que me considerasse sua filha”, entre outros. A melhor coisa seria não pensar naquilo na primeira vez em que se viam. – Desculpe estar meio desanimado, peguei uma chuva tremenda, meu guarda chuva está em frangalhos, me molhei...
- Mas, você tá vivo – disse ela, apertando os braços do amigo. – Tem tempo pra gente papar alguma coisa antes do festival? Tô louca pra te ver no meio daquela galera, seus ex-alunos devem estar orgulhosos de você.
- Mais ou menos, vamos comer alguma coisa, sim – respondeu, segurando a mão direita de Minzy, fazendo-a corar instantaneamente. Tocava em demasia no corpo de seu amigo de tantas horas de internerd que reagia de forma imprevisível ao cumprir a vez de ser tocada. O que estava acontecendo com ela, afinal de contas? Cristiano tinha o desejo de dissecá-la em um local próximo dali, perguntando o porque de reagir de forma tão tenebrosa, quando a embalagem exibia uma reação totalmente diferente. O calafrio, pelos eriçados, pernas bambas... ok, considerou ser bem pouco para defini-la. Se evoluíssem a relação a ponto de poderem se amar, seria complicado, pois se agia daquela forma ao ser tocada nas mãos, imagine ao receber um beijo, uma carícia mais íntima? “Certo que morreria”, pensava ele, preocupado. Sua preocupação também se estendia em não tornar o encontro tão esperado em um poço de constrangimento, destruindo os planos armazenados pelos dois por meses de conversa no computador. Achou mesmo que Minzy seria a típica pessoa detentora de uma personalidade expansiva, extrovertida em frente ao monitor, mas tímida pessoalmente. Ele tinha a experiência, tendo a oportunidade de conhecer diversas pessoas – obviamente – em seus quase 40 anos de vida, na internerd ou no real. Já lidara com meninas como aquela, quase sempre impedidas por elas mesmas ou por seus parentes em desenvolver o relacionamento com o professor. Mães quase sempre davam um banho de água fria, mesmo estando diante de um sujeito (outrora) bem relacionado, bem empregado e com prêmios na parede da sala do quarto. No momento atual, o nissei amargava uma vida semidestruída por relacionamentos fracassados – alguns deles nem começaram – e solidão acachapante. Talvez a jovem seria a pessoa certa para ajudá-lo a sair do atoleiro, em especial, por ter plena ciência dos problemas que afligiam seu amigo. Tinha a disposição juvenil, alegria e recursos para fazê-lo experimentar uma vida decente, ao menos algo mais próximo do que ele sempre sonhou. Estava disposto a chegar na frente de seu melhor amigo e dizer com toda a arrogância possível – mesmo sendo postiça: “eu sou bom, tão bom quanto você e cheguei onde cheguei porque mereci. Não precisei mentir, ludibriar para isto. Só precisei do auxílio salvador desta adorável mulher, minha namorada devotada, um tipo de moça que você nunca terá em sua vida”. Ao pensar na possibilidade pela enésima vez, esboçou um sorriso sacana, mas voltou ao mundo real quando teve de rumar com Minzy até a lanchonete. Ela não aparentava estar faminta, mas entendeu que seria o momento necessário para puxarem conversa. No momento, pensou que o festival não seria nada perante à conversa gostosa – e por quê não, reveladora – que teriam. Puxou a cadeira alta de vidro para que a menina pudesse sentar. Já ela, pôs o cotovelo direito no balcão e com a mão sustentando o peso do rosto macio e redondo, fitou o professor por alguns segundos. Pensava muitas coisas enquanto o via pedindo seu lanche e o dele, enquanto verificava o quanto tinha na carteira para pagar adiantado... a olhada fixa compensava todo o tempo em que estiveram longe um do outro, morrendo de vontade de sair juntos, comer alguma coisa, dançar – não no caso dele, pois todo homem dançando é ridículo – , praia, cinema... tinha a certeza de que ele se satisfaria pouco, talvez não conseguiria acompanhar seu ritmo e vitalidade jovem, mas não se aborreceria, tinha a paciência à sua disposição. Havia planejado tudo durante meses, se preparado. Seu mundo cairia fatalmente caso soubesse que há pouco Cristiano esqueceu de seu rosto e de tudo o que conversaram.
- Você está machucadinho demais – sussurrou ela, acariciando o seu braço engessado – Pode me dizer o que aconteceu com o meu querido?
- Estive na Floresta da Tijuca, normalmente apareço lá para espairecer, sair um pouco da selva de pedra, sabe? Eu sempre costumo subir Pico da Tijuca, mas pisei em falso e acabei caindo – contou, logo após, tomara um susto ao presenciar a reação assustadora de Minzy. – Rolei um pouquinho na mata, algumas árvores me pararam, mas está tudo bem agora. Fiquei uns 2 dias no hospital, alguns tamoios me ajudaram. Ainda bem que fui achado. O maior ferimento foi este braço quebrado, mas em 1 semana estarei novinho em folha.
- Tô vendo, tô vendo – disse, passando os dedos de leve em alguns arranhões fixados no rosto e ombros. – Cara, na boa, veja perfeitamente onde você está andando, pois já me acidentei em expedições, tenho uma folha corrida nessas coisinhas, huehehe. Acho que pra mim, a sensação de que se vai morrer é pior que os machucados. Você não caiu na parte do paredão íngreme não, né?
- Claro que não, se tivesse caído de lá nem estaria aqui para ver seus olhinhos – respondeu ele, que logo após a frase agradeceu o balconista por trazer os pratos – Também não sou resistente, como você vê. Não pude deixar de morrer, imagine, meu maior sonho não seria realizado.
- Qual sonho seria esse, posso saber, amore? – perguntou a oriental, visivelmente curiosa.
- O... o sonho de te dar um beijo – respondeu o quase-quarentão, engasgando com o sanduíche. Minzy, ruborizada e curvada, riu baixinho e pousou com vontade seus braços nos do colega - Quem sabe você não consegue realizar isso... no nosso segundo encontro? – disse ela, não dando um banho completo de água fria em seu colega. Quando disse “segundo encontro” colocou no professor a esperança de tê-la futuramente. Tinha o intuito de enrolar um pouquinho até chegar no momento mais esperado, como toda boa menina. Tinha o poder para fazê-lo, mas não queria ficar mal na frente do sujeito que gostava em toda a sua sinceridade. Sabia do que queria e dependendo dela, seus pais não poderiam impedi-la. Tinha a certeza de que estar “pau a pau” com seu futuro companheiro ajudaria muito a pôr o relacionamento à frente... ao mesmo tempo em que seu coração vinha sendo fustigado pela insegurança, normalíssima. Pensou que não seria dominada pelo típico arroubo juvenil, o mesmo arroubo que lhe rendeu punições movidas à violência, castigos severos e outras situações embaraçosas. Sua “casca” passava o que normalmente se pensaria da pessoa: uma jovem adulta de traços infantis, legal por natureza, com seus pensamentos pavimentados na impulsividade. Entendeu que Cristiano suportara todos os seus maneirismos e conversas-moles por meses a fio, tal como um hipnótico, um budista, mas no intuito de chegar à recompensa. Aguentou tudo e manifestou seu desejo pela guria pouco a pouco. Um dia iria manifestar, não? Tinha ciência de que o nissei fazia um esforço silencioso para tê-la nos braços, até chegar o momento em que se viram pessoalmente. Ela não fingia em um só momento, ele, excitando-se a cada toque, portava o tempo todo a frase “quero beijá-la”, mesmo sabendo do desfecho pregado por ela, que não cessava o falatório mesmo enquanto comia. – Poxa, normalmente não costumo sair de casa à noite... quero entender porquê muita gente troca a noite pelo dia ao sair pra boates, etc.
- Lembro de você ter me dito que odiava boates, também não gosto – disse ele, tomando um gole de limonada. – Tentei ser sociável aos moldes do típico cidadão da Zona Sul, mas é complicado... não gosto nem de conversar muito com os outros, imagine perder a noite inteira conversando com pessoas que você nunca viu na vida, gastar sua saliva...já passei por umas poucas e boas em relação a isso.
- Agora, você não precisa se preocupar com isso. Sei que mesmo tendo fracassado, desculpe, nessas experiências, você ainda morre de vontade de voltar lá de novo pra ver se extrai alguma coisa daquele lixo todo, haha. Eu sei disso porque dá pra ver nos seus olhos... vou ter que passar um pouco do meu sangue pra você parar de quebrar a cabeça com esse pessoal, vejo seu rosto, está tão vermelho e seco, parece que você lixou sua cara em alguma pedra antes de vir me ver. Nem com a água da chuva dá pra disfarçar... pode me pagar mais um copo de limonada, amor?
- Sem problemas. Você está certa em alguns aspectos, mas vou te falar uma coisa: não ache que me conhece por completo, posso surpreendê-la. Você tem o poder de me enfeitiçar – disse, rindo – e eu tenho o poder em surpreendê-la, quando por exemplo, você estiver andando por aí e eu te pegar por trás e te dar um beijo no cangote. Você percebe que meu antebraço está meio chupado, certo? É de tanto treinar meus beijos. Que coisa idiota, pareço um adolescente de merda falando isso, mil desculpas.

Minzy caiu na gargalhada. A dupla sentia-se bem à vontade, com Cristiano surpreendendo a si mesmo tecendo piadinhas estilo Sidney, com direito a caras e bocas. Não era o melhor que poderia fazer, mas decidiu não jogar piadas e caretas o tempo todo para não soar cansativo e até irritante. Após o gole da última limonada, percebera que faziam 10 minutos para o começo do festival e ele precisava estar presente no local. “Precisamos ir”, disse ele, tomando por impulso a mão de sua amiga, deixando-a corada novamente. Saíram da estação apressados e tomaram um bonde em direção ao Castelinho do Flamengo, próximo à praia, onde seria realizado o prêmio Profissionais do Ano.

Tinha ciência de que deveria livrar-se de Minzy, pois os jornalistas iriam reconhecê-lo de qualquer jeito, ávidos em fotografar e presenciar qualquer erro que fosse – pois naquele país os professores candidatos ao estrelato eram sempre visados – , e seria complicado passar batido por esta prova de fogo na companhia de uma menina que aparentava pouquíssima idade, mais pouquíssima idade do que qualquer outro podia imaginar. Era certo também de que os jornalistas não se preocupariam em perguntar para a mocinha a sua idade e Cristiano detestaria ser importunado com isto, afundando lentamente em uma polêmica que podia muito bem ser evitada. Além disso o nissei pensou que não deveria dedicar-se tanto à celebração, pois fora apenas indicado, o que não quer dizer que ganharia. Isto podia refletir na quantidade escassa de seus admiradores, e nem sabia se eles apareceriam no local. Voltando a isto, concluiu que não devia preocupar-se tanto com sua integridade física e mental, ele podia sim andar de mãos dadas com uma menina para lá e para cá que ninguém chiaria. Se fossem realmente abordá-lo, a polícia prendê-lo e interrogá-lo poderia dizer tranquilamente que não estaria em condições de transar com ninguém, pois a doença que carregava o privara desta prática. Minzy ainda não sabia do mal que seu querido amigo portava – e se soubesse custaria para acreditar, assim como qualquer pessoa – mas se soubesse cairia fora na primeira oportunidade. Então, o que faria com ela naquela noite? E o festival era tão importante assim? Ganhar ele não ganharia, estava convencido disto, mas o que sua visita traria de bom? Reconhecer seus alunos – se estes viessem, mas ele precisaria aparecer para conferir – , conversar com uns poucos colegas do ramo, quem sabe pedir um emprego? Morava bem na casa herdada da avó na praia do Russel, mas há um bom tempo achava que não podia sustentar-se com as reservas estocadas na residência. Procurava emprego como trocava de roupa, sempre comparecia a entrevistas, seguia as dinâmicas e no final era dispensado como muitos outros, em que praguejava e babava como um animal, tomado pela raiva – intensa, mas rápida – e pelo fato de ter perdido um tempo se fazendo de otário. Ele podia não ser eleito uma “Revelação do Ano”, mas podia aproveitar-se da presença dos figurões da Educação naquele lugar. Resolveu ir, mas precisava dar um jeito em sua companhia. Antes pensara que deixá-la andar com ele por ali não implicaria em nada realmente, entretanto, engoliu seco ao retornar ao mundo real e ver que, mesmo sendo um bosta perante os graúdos, ele seria chamado á atenção por isto, pelo menos um cochicho seria feito.

- Eu preciso dar um pulo no bar, estou apertado, depois eu volto – disse ele para Minzy, erguendo o corpo para sair.
- Ora, diga logo que está querendo que eu não vá à festa – disparou a menina, sendo séria. Cristiano cessou seus passos.
- E porque eu faria isso? - indagou ele, dissimulando mal suas palavras.
- Acredito que o senhor iria ficar mal andando comigo ali dentro – respondeu ela. - Eu sou muito baixinha e muito novinha, acho que o pessoal iria cair de pau em cima da gente se vissem a gente caminhando de mãos dadas ali. Eu entendo perfeitamente, se a bosta explodisse para o nosso lado o senhor sairia bem torradinho, então eu não quero prejudicá-lo. Podemos muito bem fazer outra coisa, mas no outro fim de semana, porque eu estudo.
- Não precisa me chamar de “senhor”, e... estou surpreso por você ter lido meus pensamentos – disse ele, voltando a sentar-se na cadeira. - Eu posso desistir do festival, se eu fizer isto e se ganhar alguma coisa na premiação eles costumam entregar os troféus em casa, então podemos ficar de fora dessa numa boa.
- Não quer esperar até o próximo fim de semana? - indagou a menina, sorrindo com lascívia para o professor ao mesmo tempo em que fechava cada vez mais seus olhos orientais. - Eu não vou sair do Rio, e não quero fazer nada apressado com... você por hoje.
- Bom, a decisão é sua, podemos ir ao cinema ou dar uma volta na (praia de) Santa Luzia, para mim não teria problemas.
- Vai me dizer que realmente não está querendo comparecer à premiação? Não tem ninguém lá que você queira conversar? - indagou Minzy, acariciando as mãos estendidas e amarelas do nissei. - Lembro de você ter me dito que procurava emprego como um condenado, então, seria melhor se aparecesse por lá, pois podia conversar com alguma pessoa referente à isto, podia arrumar um trabalho temporário que pelo menos pudesse ajudar um pouquinho com as contas... ou então, posso te fornecer parte da minha mesada, agora que eu digo que eu é que não teria problemas.
- Mas eu teria problemas se aceitasse, evidentemente que não aceitarei – respondeu ele, que tomou as mãos pequenas da menina, pôs nos lábios e beijou gostosamente. - Está bem, vou ao festival e sem você. Conversemos durante a semana e vamos ver o que podemos fazer no próximo sábado ou domingo. Me desculpa, mas senti uma vontade imensa de beijar suas mãos. Quando quiser, toque minhas mãos sempre que possível, eu gosto muito disso.
- Claro, estarei à sua disposição. Vem cá, minha mãe deve estar precisando de ajuda para com os deveres de casa, acho que ela precisa duma ajudinha. Dá cá um abraço gostoso – disse Minzy, sentindo o tronco firme de Cristiano pressionar seu corpinho. Sempre compreendera de que ele era apaixonado por ela ou então, apenas nutria um desejo sem igual por seu corpo e tudo o que havia nele. Permaneceram unidos por 2 minutos, com ele aproveitando para pensar na melhor maneira de dar o próximo passo, porque segundo ele as meninas quase nunca davam iniciativa e quando perguntadas sobre “o sentimento que seu amigo já demonstrava” se faziam de desentendidas. Provável que a pequena seguiria a cartilha, mas se recusasse seu amigo deixaria de sê-lo e se afastaria, é claro. Ele sempre utilizava deste artifício quando rejeitado por suas paixonites. Após o tempo de abraço, separaram-se e Cristiano lutou com sua mente, pois desejava jogar sua amiga em cima da mesa e cobri-la de beijos do pé ao pescoço, não interessava o quão seriam vítimas dos olhares do público. Mas, não o fez, pois era Cristiano.

Despediram-se. O nissei avisou a menina descer as escadas do metrô – ela não queria vê-lo partir, sob a alegação de que poderia acentuar ainda mais o chororô da despedida – e em seguida retornou para o seu objetivo principal, que era retomar o caminho para o festival Profissionais do Ano. Pôs em sua cabeça que valeria a pena comparecer unicamente por tirar uma casquinha da presença dos figurões, que podiam lhe render um futuro emprego, algo que almejava muito. Sem a tentativa e a conversa ele não podia fazer nada além de garimpar trabalhos por aí. Precisava mudar de vida de qualquer forma, pois mesmo tendo a casa de sua avó em suas mãos não podia se livrar das garras do IPTU. A partir daí, pensou que sua irmã Bom estava certa: ela não queria que o sujeito trocasse o certo pelo duvidoso. Andou pagando demais.

O castelinho do Flamengo era nada mais que uma casa média com diversas torres, coloração laranja, espremida entre as casas mais altas da região. Sempre abriam as portas do local para apresentações de capoeira e karatê além dos cursos profissionalizantes patrocinados pela prefeitura da cidade. Muita gente frequentava o local, vez ou outra um famoso ou pseudo-famoso dava as caras por ali, adcionando mais um brilho no recinto, tornando-o ainda mais conhecido por toda a cidade. Recentemente um cacique duma aldeia tamoio de Santa Cruz acertou com a direção do Castelinho que daria aulas de arte tupinambá para os cariocas acostumados a viver a vida urbana, mas claro, tratava-se de um curso pago. Cristiano recordou as pouquíssimas vezes em que apareceu ali, atraído pelas feiras de quadrinhos que ocorriam 2 vezes ao ano. Teve a impressão de ter visto seu melhor amigo rondar os stands mais famosos e deslizado como um peixe entre a multidão que costumava a tornar apinhados aqueles encontros. O lugar se tornara tão conhecido do grande público que o festival Profissionais do Ano se realizaria ali, com o patrocínio de uma grande emissora de televisão, além de organizações relacionadas à educação – já que a Educação era o que mais importava ali. Cristiano precisava muito aparecer naquele lugar e falar com os grandalhões de seu ramo, embora fosse arredio quanto a aceitar qualquer trabalho tinha toda a ciência de que deveria engolir seu orgulho até conseguir entrar em um concurso público, ou então reaver seu emprego de professor. No que trabalhara durante o tempo em que se manteve despedido do ramo educacional?

Carregou e descarregou sacos de frutas, verduras e legumes no CEASA, o posto de abastecimento alimentar carioca, situado no Irajá, subúrbio. Tinha sido indicado por um homem que via em seus olhos a vontade louca de trabalhar – embora não soubesse que seu protegido era muito enjoado quanto a meter a mão em qualquer ocupação – e quando fora transferido para a entrega de alimentos em restaurantes do Centro, estrilou. Carregar sacos de batatas e caixotes cheios de tomates andares acima não era para ele, como já sabia há muito tempo. Seu corpo fora vítima de farpas, hematomas, arranhões que aumentavam de tamanho, além dos acidentes ocorridos quando suas mãos não eram fortes o suficiente – como pancadas de caixotes cheios na cabeça, nos olhos e no peitoral. Em 3 dias pediu para sair, provocando a ira do protetor, que nunca mais falara com ele. E olhem que tal protetor era 20 anos mais novo que ele.

Trabalhou com montagem e manutenção de computadores em diversos cyber cafés na Baixada Fluminense. Em pouco tempo, devido ao bom relacionamento com os donos fora promovido a atendente. Daí que seu lado arredio apitou novamente em seu cocoruto, destratando clientes assíduos, mas com motivos sérios: implicâncias mil, aborrecimentos tão grandes que pediam briga, e tais brigas seriam consumadas caso não se dispensasse dos serviços. Ele já estava grande para sair na porrada com moleques de 16, 17 anos, que naquela área da cidade viviam com as costas quentes, apoiados na proteção paterna e perigosa – estamos falando de bandidos.

Antes de tudo isto, trabalhou na Escola Municipal Franz Kafka e fora despedido em apenas 5 meses, 5 intensos meses na qual formou amizade com duas meninas irmãs (Arísia e Lídia), filhas de um figurão opositor do atual prefeito da cidade. O liceu tinha sua diretora, mas o homem era seu marido e fundador da escola, cujo cargo maior nunca saiu das mãos batráquias da mulher, que na época nutrira uma paixonite pelo japonês – que respondeu àquilo com uma chupada bem dada na vagina dela. No dia seguinte pediu as contas, não contou o motivo a ninguém e por algum tempo foi procurado pela diretora, alegando que “não terminara o que começou”, ou seja, sugerindo ainda mais do que um sexo oral. Cristiano ameaçou contar tudo ao esposo desta e foi deixado em paz. Até os tempos atuais recordava do momento em que tocara o corpo gordo da diretora em todas as cavidades, beijando seus braços gelatinosos, mamando seus seios grandes e chupando aquela boceta grande e quase sem pêlos. Lembrava disto com uma pitada de prazer e uma pitada de lamentação, pois aproveitara muito pouco seu ofício ali.

Apareceu sorrateiramente, mas antes se escondera em uma árvore, como se devesse alguma coisa. Notou o burburinho na entrada do recinto, muita gente, bicicletas aos montes estacionadas, 2 bondes alugados especialmente para a ocasião estacionados próximo a um carro Modelo T cor de rosa. Lembrou se de que no evento passado ainda estava no Japão, se relacionando com os outros apenas pelo computador e adorando um guitarrista que nem sabia que ele existia. Descer ao Rio de Janeiro para trabalhar e construir uma nova vida significava uma boa coisa, visto que decidira não ser o mesmo perdedor de sempre. Seus olhos mantiveram-se focados na turba que aglomerava a entrada do Castelinho e não houve barulho ou acontecimento que o fizesse se desvencilhar de suas reflexões: a preocupação de Bom, a transa falha com Sandara, o namoro falho com a estudante namibiana, o mal relacionamento com seu melhor amigo e agora, o possível namoro com Minzy, o possível namoro com Laura Socha... as coisas podiam melhorar, sabia ele. Iniciaria sua semana com chave de ouro caso angariasse um novo emprego, um trabalho temporário que fosse. Sidney até poderia ajudá-lo, mas Cristiano não tinha menor ideia de onde ele estava no momento – e não queria saber. Suas pernas bambeavam e suas mãos tremiam, tal qual a oportunidade de transar quando se é virgem. Seus olhos castanhos e seu semblante magro brilhavam à luz sedutora do luar, não percebia ainda, mas era uma pessoa muito especial. Ele tinha de sair detrás da árvore – uma mangueira com frutos maduros – e ir à luta! Foi.

Cortou o segurança, que o interpelou quando viu que o nissei não portava um crachá. Ele era tão desconhecido assim do grande público? Mais uma prova de que não venceria o “Revelação do Ano”! “Eu fui indicado para receber o prêmio, eu fui indicado!”, bradou ele, antes de uma pessoa pedir ao segurança que o deixasse entrar. Cristiano virou o rosto e deparou-se com o dono e fundador da Franz Kafka, um homem moreno de cabelos penteados para trás, além do berrante terno vermelho. Vinha acompanhado de suas duas filhas, mui formosas em vestidos rosas e azuis. O nissei, surpreso com tudo aquilo, se viu diante de uma oportunidade de outro na qual não teria a pachorra de ignorar. “O senhor... não sei se o senhor se lembra de mim, sou o Cristiano Mamiya, já trabalhei na Franz...”, e sua tagarelice foi interrompida por ele. “Não se preocupe, eu sei de tudo, sabia que viria para cá, já que foi indicado. Venha conosco, minha mulher não pôde comparecer, mas nossa sorte é que reservei uma mesa para ficarmos”, disse ele, que com o braço empurrou-o levemente para dentro. As duas meninas foram acompanhadas – já que andavam à frente e sabiam onde ficar – e o candidato ao “Revelação do Ano” suspirou ao ser acolhido daquela forma, em uma situação que não via saída.

Constataram que quase todas as mesas tinham enchido e o espaço parecia pequeno demais para dezenas de pessoas. A mesa da família situava-se mais próximo do palco. Cristiano notou que demorou para Arísia e Lídia o reconhecerem, e quando aconteceu, custaram a abraçá-lo e beijar seu rosto como antes. Mudaram tanto e tão pouco tempo. O pai das meninas reconhecia era a empatia que os três tinham um pelo outro, e quando viram que não mais se conheciam como antes quis a todo o custo que suas filhas tratassem o sujeito como antes, mas elas viviam travadas, talvez por vergonha de agir com alegria e abertura no grande público ou por realmente ter sido mudadas e vencidas pelo tempo. Já seu amigo não se importava em abraçá-las e beijar suas pequenas e lindas bochechas na frente de todos, entretanto, vivia com as mãos abertas e com o tronco levemente inclinado, como se estivesse preso e aguardando alguma ordem para agir. O que podia fazer além de aguardar que as meninas caíssem a ficha? Lídia, a menor e de cabelos louros e cuidadosamente enrolados deu a iniciativa: avançou alguns passos para o rosto de seu amigo e o abraçou gostosamente, recordando de todos os bons momentos passados. Arísia, a maior e mais pálida, com cabelos castanho-escuros, declinou. Lídia esbanjava sua mentalidade cândida sentando-se no colo do professor e conferindo carícias reconfortantes em seu pescoço, o que abrilhantou o sorriso do amigo, satisfazendo o pai das duas mocinhas. E Arísia ainda se decidia entre seguir o que a irmãzinha executara ou permanecer sentada em sua cadeira, pois não lembrava da maioria dos bons momentos vividos com ele na escola.

- É compreensível que você esteja travada, filha – disse o diretor e seu bigode, tomando Arísia em seus fortes braços. Depois virou-se para seu ex-empregado. - Sabe, eu fiquei muito feliz em vê-lo indicado nesta premiação, a primeira vez que vi eu e minha esposa custamos a acreditar. E temos nosso dedo nisto, pois seu ótimo desempenho na Franz Kafka ajudou para que estivesse aqui, sentado comigo e com toda essa gente. Me diga, o que anda fazendo nestes meses em que saiu de lá?
- Eu trabalhei... com algumas coisas, mas nada efetivo, pois até mesmo para um professor de Buhuwu a coisa aperta em relação a emprego – respondeu o nissei. - O melhor é... sempre fazer o que estamos qualificados, mas sei que não dá para escolher, pois trabalho está difícil para todo mundo. Eu não sei o que vou fazer, vou esperar sair alguma coisa boa desta premiação e quem sabe alguém não se interessa pela minha vida.
- Me diga exatamente porque quis sair de nossa escola – disse o homem. Lídia permanecia no colo de seu amigo.
- Se eu disser, o senhor irá se magoar de tal forma que irá querer me matar.
- Não, claro que não, pode dizer, tem a minha palavra de que não farei nada contigo! - disse o diretor da Franz Kafka, espalmando a mão direita para a frente e dizendo jurar solenemente, tal qual os norte-americanos fazem.
- Hum... - Cristiano disse a si mesmo que não poderia revelar o que realmente ocorrera. Não queria minar sua oportunidade de mudar de vida, ele precisava de qualquer forma ter algum estofo financeiro sem que para isso tivesse que pedir ajuda à irmã ou a qualquer pessoa que fosse. Isso se saísse vivo do provável surto de ira do bigodudo. - Eu...precisava de mais emoção na minha vida. Quando vim do Japão para cá vi que as coisas não estavam tão...emocionantes como eu imaginava.
- Mas, você permaneceu pouco tempo na escola.
- Mas eu percebi que estava sendo um estorvo, da mesma forma que estava sendo uma pessoa boa para vocês. Sei lá, passei um bom tempo me achando uma pessoa repulsiva para os outros, algo que tive de aprender a lidar sozinho, eu até melhorei desta auto-depreciação, estou tendo consultas com uma psicóloga pelo menos 1 vez por quinzena, creio que tudo esteja bem agora, não represento mais perigo para mim mesmo ou para ninguém, com certeza.
- Sabe, a impressão é de que você está mentindo, que está escondendo alguma coisa de mim – disse o pai das duas meninas, incutindo uma lança psicológica no coração de seu ex-empregado. Cristiano se considerou perdido e que a partir dali a verdade seria extraída de qualquer jeito. Arísia e Lídia o fitavam com relativa curiosidade, possivelmente seguindo as últimas palavras do paizão. – Mas, simultaneamente vejo que está se esforçando mesmo para levar uma vida decente aqui. Eu entendo que se você mentir seria por uma boa causa, neste tempo em que passamos trabalhando juntos nunca o vi dando trabalho para qualquer pessoa que fosse, sempre foi calado, fechado e que media bem o que conversava em grupo... isso é, nas raras vezes em que permaneceu em grupo. Baseado no nosso passado na escola e na sua índole digo que deveria te dar um trabalho novamente, mesmo a iniciativa de ter saído do liceu tenha vindo de ti, por livre e espontânea vontade. Está realmente se sentindo bem?
- Sim, estou me sentindo muito bem, mas não quer dizer que consegui mudar totalmente minha personalidade. Isto é virtualmente impossível, não consigo e nem quero dissimular e nem ser alguém diferente para beneficiar outrem.
- Está bem certo – concordou o homem, apertando seu braço com firmeza e ternura. Lídia pressionou suas costas contra o tórax de seu grande amigo, demonstrando seguir mais uma vez os sentimentos do pai. Sabe-se lá como agia se o andamento da conversa fosse turbulento e previsto a chuvas e trovoadas. – Você quer voltar a trabalhar comigo?
- Sim, quero muito, mas... não quero abusar de sua boa vontade... eu só não posso voltar a trabalhar na escola.
- E porque não? O que te aflige, afinal de contas? – indagou o homem, curioso. – Desembucha, homem!
- Eu simplesmente não posso trabalhar lá... tudo bem, algumas crianças lá não gostam de mim. O senhor poderia dizer: “mas você sempre foi bem quisto por todo mundo”, mas eu estou falando dos grupinhos de meninas que vêm crescendo por ali. Certo dia em que estava passando os ensinamentos, fui xingado sem motivo algum, além disto, quando fui protestar e repreende-las, me encheram de bolinhas de papel. Acabei não denunciando nada porque sempre gostei destas gurias, que se mostraram agressoras. A vontade de ferrá-las até o osso passou pela minha cabeça, mas tanto elas quanto eu sabíamos que mesmo assim nos amávamos, considerava minhas filhas, e seriam de fato caso estivessem sozinhas no mundo, amargando a solidão, além de outras coisas.
- Ah... eu... entendi o que você disse – murmurou o homem, que mudara sua expressão facial juntamente com Arísia e Lídia, esta última bem aconchegada no colo de Cristiano, que acariciava os joelhinhos bem desligado do que mexia. – Tudo bem, não irei insistir, mas insisti porque em tão pouco tempo tu executaras um excelente trabalho, isto foi unanimidade em toda a escola. Sabes que antes de se despedir de fato fizemos uma enquete sobre o que os alunos achavam de sua pessoa. 98% deles te amavam. Mas, claro, só quem sofre entende o que está passando, então tudo bem, você tem um emprego a partir de agora: passe amanhã de manhã em meu escritório, na Rua dos Inválidos, número 237, não precisa comparecer no liceu. Tem um emprego.
- Oh, muito... muito obrigado, senhor – agradeceu Cristiano, pegando as grossas mãos de seu chefe e beijando-as. Lídia riu inocentemente enquanto seu amigo agraciava seu pai e Arísia esboçara um sorriso maroto, aproximando-se ainda mais de seu pseudo-desconhecido e o abraçou com Lídia e tudo. O nissei pôde sentir o aroma de jasmim que percorria entre o corpo pequeno e comprido da mana mais velha, que fez questão de deitar mechas de seu cabelo na testa dele. Sentia-se protegido no conforto das duas meninas e do pai delas, genuinamente feliz e satisfeito por decidir recolocá-lo no mercado de trabalho.

Era certo de que o oriental voltaria a temer a presença da diretora da Escola Municipal Franz Kafka caso a visse, e tornaria a vê-la pessoalmente, seja em uma festa na qual seria convidado, em uma reunião geral – já que, embora provavelmente trabalharia longe do liceu se recolocara nas asas de seu fundador e diretor, o marido da gorducha – , ou seja, só respiraria fundo por completo caso pedisse emprego para outra pessoa que não fosse parente deles. Retornando ao trabalho, gozaria de salário certo, além de maior conceito com Minzy e Laura, podendo retornar à vida normal sem depender de ninguém. Antes mesmo de reaparecer no Castelinho naquela noite, se imaginava dependente delas, utilizando a amizade como muleta para pedir-lhes dinheiro. Chegar ao fundo do poço só reforçaria o quão Bom estava certa sobre seu destino. Vender a casa da vovó – ou deixá-la para leilão por não ter pago o IPTU – consistiria em retornar para o Japão depois ou viver a vida rumando de abrigo em abrigo, utilizando a máquina do Estado – seu serviço social – para recomeçar a vida. Por sorte, adiara este destino, mas não a tensão, que permanecia lívida de sua cabeça até a ponta dos pés.

Após alojar sua bunda magra em frente à mesa, Cristiano notou que todos estavam com a boca seca. Queriam tomar alguma coisa, logo, seu chefe chamou o garçom e pediu refrigerante para todos – “para não influenciar mal as crianças”, justificou o forte homem. Arísia ajoelhou-se na cadeira e Lídia juntou a sua na de seu amigo, permanecendo colada nele. Parecia tão feliz que, calcado nisto, o nissei não fez objeção alguma sobre estar grudado nela, e fazia calor mesmo com ar condicionado no recinto. Mesmo assim, decidiu não magoá-la. Desde o início estava convencido de que não seria assim tão paparicado entre o público, pois “Revelação do Ano” significava pouco entre eles, mas mesmo assim, quando jogava conversa fora com seu chefe, alguns profissionais apareceram repentinamente às suas costas, viraram-se e cumprimentaram o homem, seu patrão e as pequeninas. Jovens com um quê de esnobismo, terno e gravata, tipo de gente que o protagonista desta história queria ver longe, sob todos os aspectos, mas foi educado e os cumprimentou por igual. “Espero que você ganhe, tu mereces mais do que ninguém este prêmio”, disse um. “Só de ter chegado onde chegou mereces todos os aplausos possíveis e estou fazendo figa para tu encontrares a felicidade”, disse outro, abrindo um sorriso tão ridículo que Arísia desatou a rir. Ao se afastarem Cristiano sacudiu negativamente a cabeça e descansou sua mão direita na face, apoiada na mesa, como se tivesse perdido ao menos 1 ano dedicando-se àqueles rapazes. “Estão puxando seu saco antecipadamente, se você vencer daqui a pouco irão importuná-lo ainda mais”, disse o homem, sorvendo um gole do refrigerante de maçã.

- Não sabia que existia gente interesseira até num ramo importantíssimo e essencial como a educação – disse Arísia, repentinamente. Seu amigo impressionou-se com o vocabulário rico para uma menina de 10 anos de idade. – Mas, o senhor não tem o costume de ser cumprimentado assim, né?
- Não, querida, não tenho – respondeu o nissei, convicto. – Meu maior desejo sempre foi de tratá-los da mesma forma com que me tratavam, mas minha irmã disse que não podia se assemelhar ao meu inimigo, ser tão baixo quanto ele. Está certo que de vez em quando temos de nos embrenhar em seus métodos para sobreviver, mas não acho que seria o caso para mim.
- Sempre existirão puxa sacos, até em trabalhos como guardador de placas de candidatos eleitorais – disse o homem, sorrindo antes de beber mais um pouco do refri. – E então, você ainda continua fazendo residência em frente à praia do Russel?
- Sim, mas me aborreci bastante quando apareci por ali após voltar do Japão. Eles...criaram um muro, pequeno, mas um muro próximo à faixa de areia, agora, para chegar à praia precisamos descer algumas escadas de mármore. Até entendo que as ondas estavam chegando em algumas casas, mas...
- Mas eles precisavam manter a integridade física dos moradores, é simples – completou o homem, cruzando os braços e inclinando a cadeira. – Ainda prossegue com estes pensamentos revoltosos, hein? Há quanto tempo mesmo freqüenta a psicóloga?
- Alguns meses... opa, eu preciso ir ao banheiro, com licença a todos – disse ele, levantando-se lentamente para não atropelar a pequena Lídia. Pediu licença para os convidados enquanto passava e minutos depois chegara ao corredor onde dava nos banheiros, a varanda e o pátio de entrada, com visão para a praia do Flamengo. Por um momento fora tentado pela vontade de ir embora, mas não podia, pois tinha em suas mãos as duas amorosas meninas, e mesmo tendo resolvido tudo a respeito do trabalho precisava acompanhar o andamento do festival, ver se ganharia o “Revelação do ano” e ver também se... paquerava algumas meninas. Esta última idéia pipocou em sua cabeça quando viu uma jovem de cabelos castanho-claros e longos, olhos verdes e aparência magra aproximando-se dele com um vestido bege brilhoso. Mesmo não podendo chegar à transa não custava nada sugar um tanto da saliva da moça.

Ela se aproximou do homem e sem olhar para este, encaminhou-se ao banheiro. O professor, travado, pensou consigo a melhor forma de abordá-la para efetuar sua paquera, até que pensou ser uma tremenda de tempo fazê-lo, até porque já tinha duas mulheres dispostas a ficar com ele – ao que parecia. E também, sua “presa de ocasião” não era tão bonita assim, esbanjava arrogância em suas passadas, em seus olhares e principalmente em seu nariz arrebitado. Ele não devia perder tempo ali, então, descolou-se da cadeira e andou até o bebedouro, onde encheu um copo descartável com água gelada, tomou, gargarejou um tanto e retornou até a mesa com seu chefe e as filhas. Não percebera que há 5 minutos de sua saída a mulher que dispensara procurava por seu paradeiro, visivelmente aflita.

Redirecionou seus pensamentos no prêmio e na bênção recebida nesta noite. Ao retornar para sua mesa, Cris não conseguia mais esconder a pequena felicidade imposta em seu coração e xerocada em seu sorriso. Qualquer pessoa poderia abocanhar um emprego hoje em dia, mas no caso dele, uma pessoa imersa em dificuldades em todos os ramos e que poderia irromper em crimes – se tivesse uma mente bem suscetível a estas coisas – ganhara uma segunda chance em melhorar a própria vida. Claro que poderiam haver diversas outras chances para que reabilitasse sua experiência profissional, mas como estava careca de saber, não devia escolher. Como fora dito N vezes, queria manter seu padrão de vida, morando em uma casa secular e não queria pedir dinheiro ao seu melhor amigo e aos amigos dele, pois claro, ele saberia do ocorrido por estes terceiros. Muito orgulho entalado nos peitos, é evidente. Recordou-se de que sua irmã, Bom, perguntou se não poderia resolver a pendenga com Sidney de uma vez por todas, mas respondera que ainda não era a hora certa. Tanto não escondia sua felicidade que segurara a mão pequena e quente de Lídia com mais afinco e convicção, fazendo-a corar de imediato. Olhou para ela sorrindo abertamente. “Vai ver, podemos passar fins de semana inteiros juntinhos”, pensou a menina, sentindo de leve uma excitação. Até que finalmente apareceu o apresentador do festival e todos prestaram atenção.

“Bom, estamos todos aqui no maior festival da educação estadual. Aqui, nós premiamos os melhores profissionais do ramo no estado do Rio de Janeiro e do Brasil, também no intuito de inserir em todos os profissionais uma melhora contínua. Um sentimento de melhora que nunca pode parar, porque nossa missão é transformar e melhorar vidas de pessoas que precisam da gente, precisam de nosso esforço e de nosso aprendizado. A nossa maior missão é essa, fazer pessoas de bem, sendo crianças, adolescentes e adultos, porque nunca é tarde para aprender e precisamos estar sempre à postos para lecionar, coordenar e guiar os ávidos e não ávidos em aprender, aprender e aprender. Nós já somos campeões por exercermos as profissões relacionadas ao estudo e mais campeões ainda por insistirmos nisto, nosso salário é a menor parte de todo este processo, estamos onde estamos pela vontade de ensinar e de formar pessoas de bem! Não apenas o Estado nos contratou para isto, mas fazemos porque temos de fazer, está enraizado em nossos corações e mentes! Profissões bastante edificantes e mesmo não estando no maior patamar profissional – se é que existe tal patamar, certamente na cabeça dos viciados em classificar os ofícios por classes e castas – nos sentimos realizados por cumprir o trabalho. Tanta gente lá de cima nos trata com desdém, mas como seria o mundo sem nós, mestres e diretores? Entraria em colapso, talvez sequer teríamos uma civilização tão avançada quanto esta. Entre nós temos profissionais da educação que realizaram seu sonho de estarem presentes aqui, disputando um prêmio que, mesmo sendo o que é, não forma perdedores. Todos somos vencedores. O Prêmio Profissionais do Ano apenas congratula o funcionário mais eficiente destes 365 dias e mesmo assim, todos os outros também são congratulados. 'Ah, mas não com o troféu em si', alguém poderia resmungar. Não receber o troféu é um pedido para que se esforce no próximo ano, mas não apenas para ganhar o troféu, significa unicamente uma lembrança, uma prenda recebida por ótimos trabalhos. Mas, isto não se trata de uma competição. Como não canso de dizer, não temos vencedores ou perdedores. Temos professores e diretores engajados em fazer um trabalho perfeito e o trabalho tem-que-ser-perfeito, ou ao menos algo próximo a isto. Sabemos bem que sofremos no nosso dia a dia, nada é fácil, as diversidades são imensas, mas seus pais e mães ensinaram-lhes a não desistir. E não desistam, pois o mundo precisa de vocês, precisa de nós. O maior festival da educação estadual precisa cada vez mais provar que nosso ramo terá de ser respeitado por todos os habitantes deste planeta. Nós somos professores, nós somos diretores e necessitamos seguir em nossas profissões cada vez mais para melhorar o Brasil e o mundo.”

- Quase dormi – murmurou Cristiano, recebendo um leve tapa no ombro de Arísia, pedindo-o para deixar de zoar. Todos aplaudiram e se mantiveram acomodados em suas cadeiras macias, e tão logo chegaram os bilhetes para o apresentador que o nissei eriçou-se todo, bem empolgado com a situação. Disse que só a conversa possivelmente redentora fora o bastante para estar ali, mas não deixara de pensar no prêmio, como todos os participantes inclusos nas indicações. Virou a cabeça e notou diversos dos seus ex-alunos enfurnados na extrema direita da platéia, sentados e que aparentemente não notaram sua presença. Surpreendeu-se, sua pele eriçou e um calafrio atravessou sua barriga. Ou então, aguardavam ele subir ao palco para reconhecê-lo e até parabenizá-lo, se ganhasse alguma coisa, ainda tinha isso. Resolveram iniciar a premiação sagrando os profissionais atuantes no ensino de populações indígenas e ribeirinhas da Amazônia. Após estes, os famintos do Nordeste, que além de comida e roupas, recebem livros. Cristiano, seu chefe e as duas guriazinhas entretiveram-se, maravilhados com as histórias contadas por professores atuantes nestes locais, além da apresentação de alunos moradores das regiões, convidados especiais para o festival. Lídia, mais a vontade próximo ao querido amigo, tornou a colar seu corpinho no dele, explicitando seu carinho encostando sua mão e cabeça no braço e ombro do professor, respondendo tudo com leve excitação e alegria. Ele detestava momentos emotivos como aquele, fomentados por situações igualmente emotivas transpostas na televisão, em um teatro ou numa música romântica. Não casava era com seu estilo, mas respeitou a viagem sentimentalista previsivelmente imposta pela pequerrucha. Era certo que Laura Socha não agiria deste jeito se as personagens fossem trocadas. Agiria? Mas o quente exalado do corpo da menina proporcionava uma sensação aconchegante, evidentemente acolhedora e amorosa. Se colocou como pai da criança. Mais uma prova de que as coisas melhorariam para ele com o passar do tempo.

Os prêmios foram passados aos candidatos selecionados e os 4 entraram em tensão quando foram anunciar o “Melhor Professor da Cidade do Rio de Janeiro”. “Este prêmio é dedicado ao nosso pilar principal da educação carioca no ano passado. Um não-natural de nossa querida cidade, mas radicado aqui ele fez coisas excepcionais no ramo. Foi O Cara, em todos os sentidos. No segundo semestre de 2008 começou com um projeto junto à secretaria de educação para formar uma equipe de professores à população mais pobre, situados na Zona Rural da cidade, mesma região onde por muito tempo anda esquecida pelas autoridades. Seguindo os conselhos do mestre Valença, educou os indígenas tamoios de Sepetiba, Santa Cruz e Pedra de Guaratiba, ajudou a inaugurar 10 escolas direcionadas à estudantes especiais... Batam fortes palmas para Celso Ribeiro Rosa!”

Assistiram o homem – um louro engomado e bastante pálido, estatura alta, e aboletado em um terno negro com gravata vermelha – sair de sua cadeira, cumprimentar seus familiares e após efetuar doze cambalhotas e saltos mortais subir o palco plantando bananeiras, provocando risos nas duas meninas e em boa parte da platéia. Cristiano encarou-o bastante nervoso, pois sabia que logo após os agradecimentos de Celso o ganhador do “Revelação do Ano” seria anunciado. Conhecia o trabalho de Valter, passara um tempo – pouquíssimo – com ele na Amazônia, ajudando parte da população ribeirinha na educação. Arísia notou a repentina e previsível mudança de expressão de seu amigo e tentou confortá-lo, mas ao se aproximar deste foi interpelada por Lídia, que o queria só para si. Seu pai não prestava atenção ao que ocorria, tinha seus olhos vidrados no premiado que discursava pacientemente para o público. Seu empregado e professor já tinha suas estranhas remoídas pela sensação de que sairia com as mãos abanando do local. Até dormiria bem, pois conseguiu um emprego, mas não se sentia completo no fim daquele domingo. Após o discurso do alto louro pegaram o nissei de surpresa, fotografando-o de costas, e quando foi protestar a fotógrafa disse que sua intenção era tirar um retrato de seu chefe e das filhas, o que o deixou ainda mais nervoso. Sua revolta foi apaziguada por Lídia, que acariciava seus cabelos – cujo comprimento já atingia o ombro – e claro, sentiu-se péssimo por ter sido rejeitado até daquele jeito. Até que...

“... e eu gostaria de agradecer ao meu 'rival' e amigo Cristiano Mamiya, um dos profissionais mais eficientes do Rio, um dos mais respeitados de sua geração. Ei, Cris, pode vir aqui em cima, fale para mim e para o público, por favor”. Gelou. Não tinha idéia de que Celso iria chamá-lo para o palco, oras. O que significava aquilo, uma humilhação disfarçada de prova de amizade? E como ele poderia chamá-lo de “amigo” se há não conversavam há tempos? O diretor estimulou-o a levantar-se de sua cadeira, mas ele estava tão confortável e diminuído ali... notou que seria uma desfeita recusar conversar com o vencedor e com o público, poderia ser tachado de arrogante e ressentido, além de ficar mal com seu chefinho. Então, subiu e cumprimentou Celso.

- Depois eu ganharei, hein? - brincou Cristiano, posando para fotos junto a Celso. - Mas, o que posso dizer? Você fez um ótimo trabalho, Celso, todo o tempo. Abertamente o parabenizo por ter chegado onde chegado, não visando o prêmio...como o apresentador disse, isso é apenas uma gratificação, é importante sim, prova de nosso trabalho reconhecido, mas é a menor das bênçãos que recebemos pelo bom trabalho feito, melhorar a educação é uma obrigação. Me sinto sinceramente feliz por estar aqui do seu lado, confesso que torceria contra se concorresse comigo – mais risos. Só espero que não relaxe só por causa do prêmio, hein? Parabéns, amigo.

Abraços, aplausos, gritos e fotos.

Ao retornar para sua cadeira, foi ainda mais afagado pelas meninas e recebeu um forte aperto de mãos do chefe, abrindo um sorriso amarelo. Depois, Cristiano concentrou-se no “Revelação do Ano”, pois era sua vez.

“A vencedora...” O suficiente para pedir licença ao chefe e às duas meninas e levantar, ignorando o fato de que seu gesto implicava em desrespeito. Retirou-se do recinto, claramente aborrecido.

Após pôr os pés no lado de fora, alguns de seus ex-alunos queriam conversar, e Cristiano controlou a tensão que exalava para atendê-los. Anotou telefones, além dos endereços de MSN. Não obstante sua retirada revoltada do Castelinho, muitos parabenizaram sua atitude esportiva perante a vitória de Celso Ribeiro Rosa, que assim como ele, cultivava desejo verídico em melhorar a educação do estado. Aproveitou os abraços femininos e reconfortantes e os apertos de mão masculinos, queria desaparecer na névoa dormindo no terraço de algum prédio, mas ele precisava dar satisfações à Laura, pois combinaram que ele retornaria à sua casa ainda naquela noite, sendo o combinado. “Talvez queira dormir comigo”, pensou, babando por aquele corpo forte e pálido, abraçá-lo e acariciá-lo seria um feito tão importante quanto o emprego que teria no dia seguinte. Despediu-se de seus antigos alunos quando seu telefone celular tocou.

- É a Lau. Cris, como foi?
- Eu perdi, mas perdi para alguém que valia a pena, não fiquei até o final – respondeu. – Mesmo assim estou tranqüilo.
- Tá, mas então, você tá voltando pra cá?
- Hum... - pensou demais, já colocando dúvidas e inseguranças em Laura e em Minzy simultaneamente. - Eu preciso dar uma relaxada, vou atualizar meu blog, sabe o que significa “blog”, certo?
- Claro que eu sei, está pensando que sou burra? – indagou Laura, efetuando risadas de escárnio. – Aqui tem internerd, não precisa pagar para acessar, mas se mesmo assim você quiser zanzar por aí, saiba que não poderei deixá-lo entrar em minha casa a hora que quiser.
- Eu só quero pensar um pouco, já entendi, em 1 hora dou as caras por aí, certo? E muito obrigado por sua paciência.
- Tudo bem, não demore muito, boa-noite e beijocas – concluiu a mulher, desligando o telefone tão rapidamente que Cristiano pensou tê-la importunado.

Não andou muito longe, sentou-se próximo à mesma árvore onde observara o movimento do Castelinho, deitou suas costas no tronco dela e observou as estrelas após retirar os sapatos e as meias chulezentas. Ligou para Minzy. “E então, querido? Como foi?”, indagou ela.

- Uma meia-merda, consegui um emprego, mas não fui premiado. Mesmo assim, valeu a pena, claro. Vai ajudar eu me sentir menos fracassado ao acordar pela manhã – respondeu ele, cabisbaixo.
- Ora, não fale assim, tem que agradecer muito aos céus por ter arrumado alguma coisa, eu já pensava em te ajudar em entregar currículos, pois sei que sozinho tem poucas chances em arrumar alguma coisa.
- Antes do encontro estava na casa de uma pessoa, então vamos nos ver no próximo fim de semana, certo?
- É sua namorada? - perguntou ela, curiosa.
- É uma amiga minha, uma enfermeira do hospital onde fiquei uns dias, me ajudou bastante e isso só deu abertura para que conversássemos um pouquinho e...
- E vocês estão apaixonados? - perguntou, escondendo certo desgosto dentro de si. - Bom, eu achei que... tá, vou falar logo de uma vez pra não ficar te enrolando. Eu achei que você estava livre, pelo seu... ahn... histórico sinceramente nunca pensei que você tivesse flertando com outra menina que não fosse eu. Não que você não fosse capaz disso, hahaha, não sou, mas como você próprio disse, é uma negação entre as mulheres e isso até me ajudou a...
- Então, de fato você está apaixonada por mim? - disse ele, mais tenso que ela, aproveitando que estavam colocando as cartas na mesa. - Quer..quer ficar comigo, então?
- Dãã, o que acha? - Minzy mostrou sua impaciência, começara a se aborrecer. – Tu não tinha me dito isso, de estar enrolado com alguém. Sei lá, não sei como fazer agora, estou meio confusa, já tinha tudo planejado.
- Tudo planejado? – perguntou o nissei. Nisto, já estava sabendo de que sua pessoa era importante para Minzy, e não só ela. Era importante para o Celso, para outros profissionais da educação e para Laura, que no momento aguardava-o, em frente a televisão, comendo e bebendo cerveja, como sempre fazia. No momento quem estava confuso era ele, pois tinha a indecisão em sua cabeça, não sabia se escolhia Minzy ou Laura para namorar e sabia que se bancasse o esperto e tentasse ficar com as duas cedo ou tarde iriam descobrir. Nunca se achou malandro o suficiente para sustentar 2 relações amorosas. – Que merda, eu não sabia disso.
- “Que merda, eu não sabia disso”, Minzy imitou-o. – Você não sabe exatamente o que quer.
- Está lendo meus pensamentos ou o quê? – perguntou, impressionado. – Tudo bem, eu peço desculpas por ter te frustrado, deveria ter te falado desde o começo, mas não precisa se aborrecer. Geralmente, quem costuma se frustrar sou eu... – Cristiano mal terminou a frase quando ouviu da menina que deveria se decidir até o próximo fim de semana. Imaginara o corpinho mignon de Minzy, imprensado nele, pulsando de tão quente, passando excitação e ânsia em prendê-lo dentro de um local, de dominá-lo e terminar a noite colado com ele. O professor, antes assustado na leveza, começara a compreender o tamanho do carinho e paixão que a guria nutria por ele, iniciado há um tempo na internerd e com oportunidades reais em extravasá-lo na pessoa certa e no momento certo, na noite certa. Antes, vivia submersa na timidez ao ser tocada pelo amado, mas o tocava com tanta abertura que julgava-se encarar com tranqüilidade qualquer toque, abraço, beijo... um dos mistérios da pequena que poderia ir para a cama com qualquer homem, mas escolheu ter o nissei como namorado. Entretanto, fora confrontada pela indecisão deste e uma ligação revelou tudo. Não sabia se ficava com a enfermeira robusta ou com a estudante mirrada.
- Não precisa apressar seus pensamentos – disse ela. – Conversamos mais pelo MSN durante a semana.
- Tudo bem, você tem minha palavra.
- Amo você! – disse ela, despedindo-se.
- Eu também – respondeu ele, ainda constrangido.

Laura Socha aguardava-o impacientemente, abraçando o princípio de carência crescente em seu peito. Assim como ele, precisava liberar, despejar os sentimentos e vontades sexuais em cima da pessoa certa, para que fosse presenteada à altura, porque merecia. Nisto, igualava-se ao amado, mas apenas nisto, pois as agruras eram tão distintas que ninguém poderia imaginar que seus dois caminhos se cruzassem. Ou podia, já que não estamos lidando com uma história clichê. Duas pessoas totalmente diferentes, índoles iguais, mas características diferentes. Para Laura, Cristiano estava disposto a ser o pilar para a nova vida, a maior conquista, pessoa ávida em tê-la nos braços e levá-la para a cama, mas não teria sido inocente e cega o suficiente para depositar toda a sua paixão e expectativa em cima dele. Sabia que seria um baita retrocesso adquirir uma postura infantil – no sentido amoroso da coisa – confiando-lhe seu coração. Tanto ele quanto ela carregavam nas carcaças frustrações sentimentais, mente e corpo foram fustigados pelo estresse e acabam reagindo com juramentos e promessas de que nunca seriam tão imbecis assim no futuro, mas metiam os pés pelas mãos novamente. Laura emanava firmeza proveniente do seu jeito de ser e seu carisma intimidador de certa forma até afastava os engraçadinhos, contudo seu terreno era frágil por pessoas que aparentemente não demonstravam perigo, como os homens descoladinhos. Escondiam e com o tempo mostravam sua verve tarada, manipuladora e omissa, ela sofria. Resolvera lavar a alma aplicando-lhes surras memoráveis, perdendo o fio da meada, ocasionando passagens pela polícia e processos mil. Passada a época dos imbecis, retornara à gangue onde estivera instalada por um bom tempo. Brigou, rompeu e se viu abandonada por si mesma, sem perspectivas de vida, sem local para ir, o dinheiro faltava e os parentes lhe viravam as costas. Chegou a conclusão de que só poderia morrer com dignidade se remontasse sua vida como qualquer pessoa comum: arrumando um emprego, terminando os estudos, fazendo cursos e criando um patrimônio. E foi assim que retirara sua mente do atoleiro em definitivo. Passados todos os problemas – em sua maioria criados por ela – reconstruiu sua existência, agindo como uma cidadã decente e capaz. Debruçou-se na enfermagem, o dinheiro aumentou e ela afixou-se em um pacato e simples hospital incrustado na Zona Sul carioca. O mesmo hospital no qual conheceu o fracassado-mor Cristiano Mamiya, em todos os sentidos. Necessitava colocá-lo em sua lista de “vitórias”, apesar de não tê-lo por completo – o professor ainda não manifestara amor, apenas desejo, mas desejo qualquer sujeito poderia ter. Ele teria de ser diferente dos demais, entretanto, Laura já notara sua personalidade desde o início em que adentrou à sua casa pela primeira vez. Se fosse rejeitada, encararia de forma civilizada, ao contrário da maioria das reações passadas, mas isto por tratarem-se de tarados, omissos e manipuladores. Precisava mudar para melhor sua situação amorosa e o nissei poderia corroborar a mudança – até por ele próprio almejar sua própria mudança. Uma coisa ligaria a outra, logo...

Cristiano soltara o bonde há alguns metros da rua São Clemente, próximo à casa da enfermeira. Ainda vivia imerso na indecisão, pois considerava péssima idéia prosseguir com estas “aventuras” dedicando-se a uma relação em detrimento da outra ou dividindo-se. Sabia que sequer poderia embrenhar-se nisto, porque não tinha sido agraciado pela mesma malandragem de Sidney Silvestre, sem contar que em seu coração pulsava uma humanidade inerente ao seu estilo próprio, logo, se sentiria um merda por enganar as duas mulheres, ele teria de se decidir. Para ele, Laura era a rebelde, mas ao mesmo tempo madura. Já Minzy explicitava seu jeito infantil e bobo de ser, mas poderia ser séria quando quisesse. Tinha um histórico formado com a coreana, pelas conversas intermináveis na internerd, já Laura ele conhecera há dias atrás, no hospital e só foi adiante porque esquecera da pequena interneteira – talvez em razão da porrada que sofrera na cabeça – e por suas conhecidas “talagadas”. “Vou dar uma talagada aqui e ali para ver se cato alguma coisa”. Se dispensasse qualquer uma, mesmo que apenas na questão do namoro, magoaria alguém e ele talvez teria de minimizar a importância do namoro para não gerar um rombo definitivo. É certo que cedo ou tarde alguém se chatearia com seus feitos – e isso SEMPRE ocorreu em sua vida, ele próprio também SEMPRE se chateou com as coisas e com as pessoas, em muitos momentos, por demais - , em resposta a esta ação e reação ele poderia dizer “ossos do ofício”, mas as coisas não eram tão fáceis assim. Seria cobrado. Mas como ele seguraria o rojão?

Sentou-se em uma praça próxima à estação do metrô, refletindo sobre o que iria fazer a partir dali. Pensou na idéia de dispensar Minzy, mas isso quando engatasse sério um relacionamento com Laura, que embora algumas recaídas aqui e ali de imaturidade convencia como pessoa feita e independente. Minzy ainda morava com os pais, que com toda a certeza discordariam duma possível relação pela gritante diferença de idade. Pronto, eis um motivo perfeito para desestabilizar planos para namorar. Ele queria tê-la, mas ignorava a questão da aprovação paterna – não esquecera, ignorava – , mesmo sabendo que bateria de frente com isto no futuro. Ele poderia dar uns beijinhos sem compromisso, mas precisaria chegar a um denominador comum. Mesmo tratando-se de dois adultos, transar “com compromisso” seria inviável, a possibilidade de Minzy ceder seu corpo era quase nula. Bom, ele não podia transar mesmo, então, por quê se preocupar? Estava esfomeado por conselhos, no momento nenhuma pessoa poderia guiá-lo de melhor forma que Emily, sua amiga imaginária. O frio era constante, e Cristiano, ainda sentado no banco da praça, esfregava os braços freneticamente, até que alguém – por trás – o ajudou.

- Você está se aborrecendo demais com essa coisa de namorar ou não – disse Emily, sorrindo. - O que eu posso fazer por você?
- Ficar comigo você não pode – respondeu rapidamente. - Então, estou quebrando a cabeça para escolher entre uma enfermeira “chav” e uma patricinha princesa da internerd. Laura e Minzy, você já deve conhecê-las. Preciso de uma luz, urgentemente.
- Ué, apenas escolha uma das duas e nem vem me dizer que “não é tão fácil assim”. Você já sabe tudo o que precisa sobre elas, pelo menos o necessário, o básico. Só está faltando você tomar a decisão, não fique se estressando tanto – disse ela, sentando-se próxima a ele.
- É isso que tem a me dizer? - perguntou ele, decepcionado.
- É. E então? Laura está esperando por você. Só quero ver quando ela saber que tu não podes fazer sexo...se seguisse por essa questão do sexo, você poderia ficar com uma frígida, mas sei que não é isso que quer, né?
- Bom, ela saberá de qualquer jeito, então, melhor saber da minha boca – levantou-se, decidido.
- E quando você começará a procurar...
- Eu não sei por onde começar. Sidney sabe mais que eu sobre isso e...
- Por quê não experimenta falar com seus parentes? Não é possível que...
- Eles não sabem de nada, disseram que minha bisavó sabia...
- E tu realmente crê neles em relação a isso? - Perguntou ela, confiante. - Tchau. Quando você se resolver com suas mulheres faça um favor a si mesmo de descobrir a cura para a sua doença.

Cristiano observara silencioso Emily despedir-se, sumindo na névoa. Ele já tinha a resposta na mente, não precisava pedir conselhos a qualquer pessoa, só reforçariam o que já concluíra. E tomou caminho, em direção à casa de Laura.


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Mensagem  Admin Ter Set 21, 2010 12:26 am

A chuva apertou ao se aproximar da rua São Clemente, como se o próprio tempo impedisse o avanço do professor, que por conta disto chegara encharcado na cerca de entrada. Bondes passavam em alta velocidade, apesar da água formar enormes poças em parte da via. Há quando tempo não andava pela rua à noite em um momento de chuva? Chegou a conclusão que não deveria fugir de algo presenteado pelos céus, até porque as possibilidades da chuva tornar-se prejudicial a sua saúde seriam mínimas. Lembrou que quando criança costumava atingir o limite do prazer adormecendo ao som da chuva batendo no solo e constatou que poderia alcançar esta oportunidade adentrando à casa de Laura. Sabia que ela queria que seu novo amigo adormecesse ali, o que era muito bom, mas como o nissei bem sabia, sua robusta companheira tomaria um susto caso soubesse de sua condição especial. Tinha a experiência própria em lidar com pessoas rebeldes e sofrera na carne as reações feitas por elas em relação ao seu problema. Evidentemente estaria fadado ao sofrimento eterno caso não descobrisse a cura. Ele teria de contatar seu amigo novamente para perguntar sobre isto, mesmo recebendo as mesmas respostas negativas de sempre. “Então, para que perder tempo com um imbecil destes?”, pensou Cristiano, tendo seus cabelos lambidos pela água. “Eu não posso mais perder tempo com ele, tenho uma família que podia me ajudar neste aspecto, ele também tem a sua, então, se ele não está nem aí em relação à doença posso procurar a cura por mim mesmo”, e abriu a porta da cerca para entrar no apartamento. Já temia uma repreensão por parte de Laura em relação ao seu estado encharcado, empapado de água da chuva, mas ela entenderia que não teve tempo de chegar na hora. E apertando a campainha, Cristiano aguardou na porta, empedrado como uma estátua, com mil coisas rolando dentro de sua cabeça. Laura o viu do fundo do corredor de sua residência, se deu conta de que chovia bastante e correu até a porta, onde girou a chave, abriu e deixou-o passar. Suas mãos pesadas firmavam-se nas costas pequenas do visitante, ao mesmo tempo que um sorriso perpassava pelo rosto dele, levemente envergonhado com aquela situação comum nas famílias e casais: a genuína preocupação.

- E então, como foi no festival? Tem algum troféu escondido por aí? – indagou a menina, maior do que ele, maior do que nunca, vestindo um shortinho de moletom azul claro e um casaco cinza com estampa do Pato Donald. Seus longos cabelos louros esvoaçavam no centro de seu rosto cada vez que mexia nas costas e braços do oriental, explicitando seus cuidados para com ele. Deixou-o ali e correu para o banheiro, onde pegou uma toalha branca e grande e passou para ele, que se enxugou demoradamente. – E então, me diga como foi.
- Meu patrão me ajudou a entrar, pois eu não tinha o crachá, tive sorte dele me ver na entrada, conversamos, pedi por uma oportunidade de emprego e ele me arrumou, mas não ganhei o prêmio “Revelação do Ano”. Mas, pelo menos ganhei o prêmio de ter saído de lá pronto para voltar ao mercado de trabalho.
- Isso é maravilhoso! – exclamou Laura, sentada em um banquinho e batendo palmas. Dizer que ganhara o “prêmio” de ter arrumado um novo emprego o deixava imbecil e sua vergonha originava-se por isto, não por Laura agir como uma pessoa amplamente feliz e positiva, batendo palminhas. Ao que parecia estava feliz de verdade. – Que horas ele te disse para aparecer lá?
- Não me disse, mas eu sei que terei de estar na Rua dos Inválidos, número 237, no escritório dele, aparecerei umas 7 horas da manhã, que chegar um tanto tarde vai achar que eu não estou a fim de trabalhar...
- Isso mesmo, e eu saio mais ou menos daqui neste horário, então, iremos juntos – disse Laura, cruzando as pernas e entrelaçando os dedos. Seus olhos grandes fitavam Cristiano de cima em baixo, queria dizer alguma coisa, mas não encontrava brecha. – Eu estou acabando de fazer a janta. Vai voltar pra casa agora?
- Se você quiser eu fico – Cristiano estremeceu com a pergunta da enfermeira. Por alguns segundos achou que estava dando certo incômodo para ela, pelo fato de ouvir dela se voltaria para a casa naquele momento. Sempre fora desconfiado ao lidar com as pessoas por muito tempo, por isso mesmo mal lidava, para não sofrer e para não fazê-las sofrer, anteriormente tinha a convicção de que permaneceria naquela casa até o dia seguinte, que dormiria com sua anfitriã, algo que segundo ele já estava pensado e concordado por Laura, mas tremeu na base de forma brusca quando ouviu se já iria embora. Se acostumara bastante com a solidão, por anos a fio, mesmo tendo estado à barra da saia de sua irmã Bom por alguns meses (não o suficiente para carregá-lo para o sentimento da boa companhia) e como queria voltar a ter alguém achou por bem resolver tudo naquela noite. Mostrava-se bastante afobado, de personalidade instável, não conseguia segurar a possibilidade de também ser rejeitado pela loura. – Quer que fico?
- E porque não? Sempre é boa uma companhia... sei que você não tem medo de mulher, então tá beleza, vem comigo, tire essa roupa – disse ela, erguendo-se e pegando nas mãos do visitante. Cristiano entrou em um pequeno banheiro que armazenava jornais, livros e revistas, entocados em uma estante espremida na parede. Deixou-o sozinho ali para que trocasse sua roupa, e Laura apareceu segundos depois lhe dando uma bermuda larga que usava quando frequentava a praia e uma camisa apertada, que evidenciava seus músculos. O nissei fora ainda mais tomado pela vergonha ao usar aquelas vestes, mas relaxou quando pensou que só iria usar dentro daquela casa e suas roupas foram postas para secar.
Saiu do cômodo apertando a camisa para baixo, seu umbigo aparecia e suas pernas magras eram castigadas pelo vento que insistia em irromper pela janela. Sentiu-se nu. Custou a procurar por Laura, permaneceu na cozinha, queria tomar água, mas não abriu a geladeira sem pedir, então abriu a torneira e encheu a água corrente em um copo de vidro sujo de vinho – só percebeu estar sujo após tomar o gole. Retornou furioso ao pequeno banheiro e fechou a janela, especialmente pelo vento forte e molhado estar encharcando a pilha imensa de jornais que descansava ali. Jornais direitistas que aguçaram sua curiosidade em lê-los, logo pegou os periódicos dali para serem lidos, colocando-os em um saco plástico. Ouviu um som oriundo do rádio, imaginou os movimentos que Laura fazia ao dançar, suas caras e bocas, seus passos femininos contrastando totalmente de seu avantajado porte físico, algo bizarro e ao mesmo tempo instigante de se ver. Por isso mesmo Cristiano esgueirou-se entre a dobra da parede, tentando observar Laura mover-se no ritmo da música dançante, até que decepcionou-se quando se deparou com a grandalhona deitada em seu sofá marrom apreciando a leitura de uma revista de variedades enquanto mordiscava pães de queijo enfiados em um cesto. Abaixo de seu rosto estava uma garrafa de suco gelado em 1 litro e meio. Mesmo sendo fustigado pela frustração observou a mulher em relativa curiosidade. Estava sentindo-se tão bem executando uma tarefa tão banal que não imaginá-la como esposa seria impossível no momento. Ela respirava lentamente, mas sua garganta movia-se com ferocidade ao ingerir as pequenas massas...em um momento o nissei imaginou sua anfitriã mastigando um bloco de cimento, queria ver seu esôfago e garganta adquirindo estruturas rudes e a respiração movendo os grandes seios que sustentava, ficaria vidrado ao presenciá-los estufando e relaxando, estufando e relaxando. Arquitetou uma forma de meter-se entre a garota e sua revista, até que chegou a um denominador comum.
- Fiquei bonito? – indagou Cristiano abrindo os braços, alegre no físico, triste na mente. Laura passou seus olhos da revista para o semblante magricelo dele, que aguardava alguma resposta alegre da menina como oásis em um deserto.
- Você ficou feio. Não imaginava que era tão varapau assim – disse a loura, segurando-se em suas gargalhadas. Foi o suficiente para seu visitante fechar seu corpo e rumar apressadamente em direção ao pequeno banheiro, onde se trancou e pousou suas costas atrás da porta, pensando no que fazer. Tinha ciência de que ela apenas estava tirando uma com a sua cara e que não teria jeito de se safar de sucessivos gestos de escárnio enquanto vestia aquela indumentária, não tinha como fugir além de voltar a vestir sua roupa encharcada (que no momento fora posta para secar), e certamente ela não permitiria que vestisse roupas molhadas dentro de sua casa... talvez até fora dela, tratando-se de um novo amigo. Respirou fundo por estarem sós na residência. Caso estivesse na presença dos outros e a dona da casa viesse com a tirada morreria de vergonha. Mesmo assim talvez tenha chegado a hora de agir menos como um adolescente e mais como adulto. Carregava na carcaça quase 40 anos na cara, não tinha motivos para envergonhar-se como uma menininha.
Saiu do pequeno banheiro e voltou até a sala de estar, onde encontrou a mulher na mesma posição de antes: de pernas para o ar, cabelos soltos e com os braços semi-estendidos, vendo a revista. Esboçara um riso ao perceber a presença dele, mas não fez nada. Cristiano deslizou em sua direção e quando Laura deu por si o nissei se infiltrara embaixo de seu braço e reapareceu há centímetros de seu rosto, tampando o foco de visão da mulher – que fitava a revista – com o seu rosto. Sentia a respiração quente da moça invadir-lhe as entranhas. Percebeu estar corada. Cristiano tomou mais coragem ainda e moveu sua mão esquerda, tomando ímpeto em acariciar o rosto quadrado da enfermeira. O fez, e ela balbuciou avermelhando-se ainda mais. Largou a revista e os pães de queijo.
- O que você tá fazendo... ? – murmurou a mulher, aparentando estar enfeitiçada. – Vai se aproveitar de mim?
- Não – respondeu ele – até porque você não deixaria, pode me matar com um soco. Tô apaixonado. – Cristiano pronunciou estas palavras ainda mais nervoso e muito mais tenso que Laura e de imediato pensou que seria respondido violentamente, em forma de palavras ou em socos. Dizer apenas que estava “apaixonado” soara genérico e direto demais nos ouvidos de uma mulher não tão domável assim, estava na cara que Laura Socha era mulher para levar com jeitinho, desarmá-la com lentidão e carinho. Cristiano não emanava sequer o protótipo do homem direto e machão, portanto, devia fazer questão de agir como Cristiano, não como outro qualquer.
- Hum...você está apaixonado – disse a enfermeira, erguendo seu crânio em direção ao dele, que instintivamente afastou-se para dar espaço, e por temor também. – Por quem?
- Advinha.
- Bom, eu esqueci que tenho de ver uma pessoa numa festa, você vem comigo? Claro que não vou te deixar sozinho na minha casa, acho que sua roupa já está seca – disse Laura, levantando-se em definitivo e percorrendo o corredor até chegar ao secador, onde primeiro tirou a calça da máquina, que já estava seca. Quanto às outras peças, ainda viviam úmidas, então deixou-as ali novamente. – Me espere um pouco, vestirei alguma coisa melhor.

Cristiano esperou pacientemente sentado no sofá onde a mulher estava e quando Laura retornou – em 5 minutos – vestia uma calça jeans azul-clara apertada, uma jaqueta azul-escura e camisa branca evidenciando um avantajado decote. Seu visitante não parou de olhar para o centro daquele decote e Laura teve de enforcá-lo para que desviasse o olhar – o nissei até tentou descontrair rindo, mas chegou a tossir desesperadamente após ser enforcado de verdade pela loura, que tinha seus cabelos longos presos em um alto rabo de cavalo. Ela poderia matá-lo de qualquer jeito, enquanto vivia naquela casa estava nas mãos dela, o que poderia fazer além de bancar o desconfiado ou sair do recinto? A primeira opção vinha com naturalidade, enquanto que a segunda não fora forte o suficiente para carregá-lo, já que era realmente apaixonado por Laura, queria tê-la, beijar sua boca, lamber sua testa, mexer e mamar em seus seios fartos e por fim, transar com ela. Imaginara como seria bom ir para a cama com uma mulher troncuda como ela – e excitava-se, fitando seu olhar perdido para a parede, como se estivesse sob domínio de um feitiço – , até que voltou ao mundo real quando a dona da casa pediu para que se levantasse e rumasse com ela em direção à festa. Ele não tinha escolha, era isto ou retornar para a casa, onde pela enésima vez abraçaria a solidão. Ergueu o corpo apoiando-se na mão calorosa da moça e demorou para soltar. Na verdade, ela não queria soltar, porque estava se afeiçoando a ele, mas não a ponto de deixar abertamente o que sentia pelo maluco. E ele, não tinha a mínima ideia de que ela gostava de sua pessoa mais do que pensava. Era do jeito de Laura bancar a durona. Não bancava. Verdadeiramente o era.

Trancaram a porta principal da casa e caminharam por alguns minutos no frio intenso proporcionado à eles pelo clima. Não chovia tanto, mas sacaram de um guarda chuva negro, que comportou os dois humanos até o recinto, mas demorou para que chegassem: como a festa situava-se à beira do Largo do Machado, tomaram um bonde rápido – quando na verdade, por conta do pouquíssimo trânsito noturno, andou vagarosamente – e sentaram-se no banco de trás, como os jovens normalmente fazem. O problema é que, apesar de aparentar ter 25 anos Cristiano carregava 40 nas costas. Pensou que podia enganar meninas mais novas por conta de sua aparência jovial, mas era fracassado demais para levá-las no bico. “Fracassado para levá-las no bico? E desde quando isto é necessário?”, indagou para si mesmo, imerso na questão. As coisas não eram tão fáceis assim. Nem todos apreciavam a beleza de seus olhos castanhos, oblíquos, sua pele pálida e magra, além da facilidade em combinar com qualquer roupa – mesmo que ridícula – e de se vestir de mulher. Tocou em seu rosto, verificando também com um espelhinho que sempre carregava: nenhuma ruga, nenhum pé de galinha, sua pele prosseguia lívida como sempre, seus cabelos negros também não sofriam a ação do tempo. Recordou que pelo efeito retardatário de seu metabolismo sempre – e obviamente – fora confundido. Considerou também que Laura não tinha se impressionado em ver sua certidão de nascimento e sua aparência. “Ela devia estar ocupada demais surrupiando minhas coisas”, pensou ele, soltando uma risadinha. Falando em surrupiar, pensou no tipo que seria esta festa, visto o estilo e o jeito de ser de sua companhia. Ela não detalhou sua “festinha”. Podia ser tanto um show de rock, uma rave quanto uma orgia de qualquer tipo. Olhou-a de esguelha e percebeu a mulher olhando para fora, como um cachorro deslumbrado, mas sem explicitar surpresa ou alegria. Seus grandes olhos caíam ao sabor do barulho da chuva, respirou devagar, logo qualquer pessoa podia pensar que Laura ia contra sua vontade, estava cansada e queria dormir.

- Vamos voltar pra casa, Laura – disse Cristiano, tocando seu ombro largo. – Não precisa falar com ela hoje, estamos às portas da madrugada e não quero te ver assim, tão cansada.
- Eu sempre falo com essa menina, só tenho essa hora para cuidar dela – justificou a loura, passando intimidação com seus lápis de olho nos globos oculares mesmo cabisbaixa. – É um favor que estou fazendo para mim e para a desgraçada.
- Quer me falar mais sobre ela?
- Não, quando chegarmos você verá quem é – concluiu a mulher, que permitiu ser abraçada por seu amigo. Cristiano aproveitara o momento, Laura também sabia disto, mas resolveu não protestar, pois achava que devia dar certo caldo para ele. E também por querer ser abraçada, genuinamente.

Desceram do bonde em frente ao Largo do Machado. Caminharam poucos metros até a rua do Catete, onde bombava uma festa num sobrado negro. Luzes estroboscópicas, muito grito e música saíam do interior. Laura bafejou e tomou a mão de sua companhia, seguindo em direção à porta do recinto, quando nem precisou identificar-se para o leão de chácara, já sabia quem era ela.

Subiram as estreitas escadas de madeira, a temperatura do quarentão foi aumentando, sua expressão mal disfarçava seu estado de espírito, quando a mulher cumprimentou alguns conhecidos, gente vestida de preto, como todo mundo ali. Queria procurar a menina de qualquer jeito e saiu perguntando enquanto não tirava a mão direita da mão esquerda de Cristiano, que tentou ajudar tentando identificar a garota, apesar de nunca ter visto o rosto dela. Um idiota, em todos os sentidos imagináveis. Subiram no terceiro andar e viram a tal garota cheirando cocaína com alguém que seria seu namorado, alto e atarracado. Tratava-se de uma pequena de cabelos negros e franja anacrônica, magra e vestindo couro por inteiro. Tentou esboçar alguma surpresa ao ver Laura Socha caminhando rapidamente em sua direção – praticamente deslizava, ao contrário do professor, que foi deixado de lado momentaneamente – e subitamente desferiu um soco bem dado na testa do namorado da menina. O forte impacto foi o bastante para bater a cabeça careca do homem na parede, ferindo a nuca. Não satisfeita, Laura meteu um soco em seu estômago, e quando este abaixou-se, urrando de dor, finalizou com uma cabeçada estrondosa vinda de baixo para cima, colocando-o para dormir. Deixou todos os presentes na sala horrorizados.

- Vamos sair daqui agora – bradou Laura, segurando-a pelo colarinho. Sua amiga nada disse. O nissei correu seus olhos rapidamente e notou que alguns homens e mulheres preparavam-se para brigar com sua amiga, que já previa a reviravolta antes mesmo dele pensar nisto. Daí, o professor recordou que não dominava nenhuma técnica de luta, até a boa e velha “briga de rua” era executada atabalhoadamente, pois não saia na mão com ninguém há muito tempo. Vendo que não sairia dali sem entrar na porrada, Laura pediu com rapidez se Cristiano optaria em ajudá-la ou se afastaria, como o covarde que normalmente era. Para não fazer feio perante a moça que queria namorar, entrou dentro.

A briga começou. Cristiano já recebera um soco no olho, e ao se distrair para passar a mão no rosto fora chutado no tórax, e caiu no chão como um saco de batatas. Mesmo assim tentou proteger o rosto dos sucessivos chutes de dois jovens. Laura Socha largou a menina por uns minutos e caiu para cima de seus desafiantes, socando os pescoços, os rostos, chutando o saco de quem ousava a enfrentá-la, e obtendo sucesso com isso, mas também apanhava: batiam em suas costas com barras de pau e tentavam derrubá-la com rasteiras, mas suas pernas eram fortes demais. Cristiano levantara-se com custo, após segurar a perna de um dos jovens, derrubá-lo e dar um pisão certeiro no saco do agressor enquanto que o outro gingava, preparado para socá-lo, Cristiano gingou como ele e levou dois socos seguidos, bateu com as costas na parede e abriu caminho nos peitos do jovem com um chute forte. Avançou sobre ele com uma sessão de socos nas costelas e no rosto. Enquanto batia, acompanhava o andamento de Laura na luta. Esta derrubara 3, quebrara o braço de um, derrubara-o com uma rasteira e pisou seu rosto com seu coturno, pegou uma barra de ferro já frouxa e desferiu golpes a esmo, atingindo 5 pessoas, até quem apenas tentava fugir da situação. Jogou 3 deles ao chão – estes queriam derrubá-la a todo o custo – e arrancou sangue de seus rostos com golpes de barra que cada vez mais se intensificavam. Seu sangue fervilhava e por sua cabeça passou a sensação de ter que matar alguém ali. Cristiano derrubou um gordinho socando suas costelas, mas era difícil derrubá-lo. Recebeu uma paulada no ouvido e caiu no chão com o impacto. Laura o salvou enforcando o sujeito e espremendo a cabeça do mesmo na parede. Ainda havia um maluco, que tentou subjugá-la com chutes, mas Laura repeliu-os e o pôs no chão com um murro bem dado no rosto.

Tudo parecia estar concluído e sob controle, até aparecer o leão de chácara que guardava a entrada e saída do local. “Que merda é essa que está acontecendo?”, berrou o homem de preto, abrindo os braços. Cristiano estava escorado na parede e respirava fundo enquanto olhava para Laura e para o homem, curioso sobre a reação futura de seu amor. Laura estalava os dedos e o leão de chácara se aproximava dela lentamente, perguntando a mesma coisa. “Você sabia que estava lidando com um bando de mauricinho drogado, certo? Só vim aqui para tirar minha amiga desse lixo – aponta para a franjuda que estava imprensada na janela – e de sobra, dar um corretivo no babaca que vendia cocaína para ela. Claro que depois disso a cambada apareceu para defender seu ‘drug dealer’ favorito, então resolvi acabar com tudo e todos de uma vez”, disse a loura, terminando de estalar o dedo mindinho direito. “Só por causa disso você se acha no direito de bagunçar tudo?”, indagou o homem, parando há centímetros da moça. “Ela é maior de idade e sabe muito bem o que está fazendo!”, e Laura respondeu “Fácil demais achar que só porque é maior a pessoa tem direito de se destruir, mas não quebrei a cara de todo mundo por ela, mas pelos pais da filha da puta que oram todos os dias para que ela tome tino. Escuta, garota”, dirigiu-se à menina de preto, “é a última vez que salvo seu rabo, não estou sendo paga para isso, mas faço por causa da sua família. Se eu te ver se drogando de novo eu acabo contigo”, e ao concluir percebeu que o segurança avançara para ela, aplicando socos no rosto e na barriga, mas Laura Socha esquivava-se o mais rápido possível, repelindo uns socos e tomando uns, até que baixou a guarda e foi jogada na parede. Foi pega pelo fortão, que enrolou seu braço um no outro e a jogou num golpe de judô pela parede, depois da queda forte atingiu o chão. Cristiano queria fazer alguma coisa, ao aguentaria ver sua querida sofrer e apanhar, mas tinha a certeza de que seria apagado na primeira investia para com o cara. Laura levantou-se lentamente, quando levou um chute que lhe raspou o queixo, e tendo apenas raspado aloura ainda teve tempo para segurar a perna do homem e contra-atacar com um chute no saco, sendo repelido de pronto por ele – que sorriu. Laura agiu com a outra perna, enrolando-a no pescoço do oponente e derrubando-o violentamente no chão. Os agredidos passaram a assistir e outros a sair fora do recinto com rapidez. Laura avançou sobre o homem e desferiu socos diretor no rosto dele, quebrando-lhe o nariz e um dente da boca. Levantou-o nas costas e aplicou um golpe de judô derrubando-o no vidro da janela, tendo o corpo forte do leão de chácara jogado contra a grade de ferro enferrujada. Laura ergueu-se com rapidez e ofegou como um animal, correndo na direção do cara para finalizar a luta. A intenção era jogá-lo do alto, então, desferiu cotoveladas na nuca do segurança, deixando-o desacordado. Pegou-o pelo terno e levantou-o. “Já chega, Laura, não faça isso, ele já apanhou”, bradou Cristiano andando em direção a ela. Não respondeu. Ergueu-o ainda mais alto e lançou o homem pela janela, observando-o cair em cima de 3 motos Jialing. Seu corpo deixou de respirar, um filete de sangue brotou de sua boca e invadiu o rosto e o corpo, empapando tudo. Cristiano alcançou a mulher, abraçando-a por trás. Pôde sentir a brusca e intensa respiração vindo dela, o suor e a boca molhada. Seus ferimentos eram superficiais, exceto o do punhal fincado em sua costela. A outra menina queria fugir, mas Cristiano alcançou-a rapidamente, quase deixando-a escapar, pois não queria forçar seu corpo, não queria machucá-la. “Não acredito que não saiba prender uma garota”, disse Laura, rindo de forma fugaz.

- Você deve ter matado o cara, não precisava chegar a esse ponto. – disse Cristiano, temendo aborrecê-la.
- E daí? – indagou ela, com espantosa naturalidade. – Ele iria me matar?
- Não, não ia – rebateu o nissei, sério. Laura o observou por alguns segundos sem dizer nada e pegou a menina pelos ombros. Todos os três desceram a boate sob os olhos assustados e zangados de quem apanhou e de quem apenas assistiu toda a confusão. Cristiano observava todos no intuito de contar para a loura quem iria voltar a reagir e pelo o que parecia, ninguém estava a fim de querer vingar o leão de chácara ou qualquer pessoa que entrara na porrada. Ao cortaram a porta de entrada e saída do local, ouviram um carro de polícia, sua sirene soava num crescendo padrão. Os três correram, mas foram alcançados.

- O que está acontecendo aqui? – perguntou um dos policiais.
- Eu dei porrada na maioria deste pessoal, todos eles estavam em conluio com traficantes e o traficante que estava drogando esta menina aqui levou uma surra tremenda para ficar mais esperto. Quando bati nele, todos se voltaram contra mim, eu não podia ficar quieta, enquanto apanhava. Meu namorado me ajudou a sairmos inteiros desta porcaria, certo?
- C-certo – respondeu Cristiano, tenso por estar sendo abordado e por ter ouvido da mulher que era seu namorado, mas este prazer não durara muito tempo, pois o abordador rumou com eles até a casa, deparando-se com o grupo descendo as escadas, além de muitos estarem amontoados ao lado da porta. Laura observava-os e trincava os dentes, aplicando uma careta para eles, amedrontando-os. Seu “namorado” encostava-se a ela, temendo ser pego de surpresa. Enquanto o outro policial observava o estado lastimável do leão de chácara desacordado, tendo dificuldades em verificar a respiração, o abordador subiu com os três principais envolvidos para explorar o lugar. Barmen, barwomen, garçons e clientes assustados. Quem assustou-se depois foi o policial, fitando alguns participantes da contenda sendo ajudados por amigos a se levantar além de mais uns ainda desmaiados e deitados no chão chorando por terem apanhado. Retornaram para o térreo e foram ver o leão de chácara estropiado. O outro policial anunciou que ele estava morto.
- Bom, vocês já podem me prender, então – disse Laura, em assombrosa tranquilidade, virando-se e juntando os pulsos para receber as algemas. Estava tão calma que surpreendeu os dois oficiais, e enquanto um a algemava o outro deu mais uma olhada no lugar, e abordou o dono do local, nada mais que uma mulher mirrada e mulata de cabelos longos e lisos, entocada em um terno branco e brilhoso. Cristiano assustara-se com a calmaria de Laura e queria protestar sobre o que acontecia, mas a loura o fitou seriamente e murmurou: “não faça nada”.
- Então, acabou assim? – indagou Cristiano, abrindo os braços.
- Depois de tudo, leve ela para a mãe? Ela vai te dizer o endereço – respondeu a loura.
- Vocês todos, entrem no carro. Vou chamar os paramédicos – disse um dos policiais, ligando para uma ambulância mais próxima.

Cristiano sentou-se no banco de trás da viatura, próximo à Laura, que não abaixara a cabeça. Próxima a ela estava a menina de franjas que não parava de resmungar, até que virou-se para a mulher forte e perguntou: “Novamente você extrapolou todos os limites, precisava realmente fazer este tipo de coisa?”, e recebeu um “Eu precisava desestressar um pouco”, respondido pela mulher, o que espantou duramente seu parceiro. Cristiano percebera que estava diante de uma mulher sedenta por violência, utilizando-a para – em suas palavras – “desestressar”, entretanto, não significava que estava à frente de uma psicopata ou algo do gênero. Poderia amá-la da mesma forma, mas matutou e concluiu que Laura talvez poderia tê-lo usado, assim como podia usar qualquer pessoa. Estar em um balaio de gato como aquele o amedrontava, pois apesar de tudo, nunca esteve na cadeia. Como poderia livrar-se do xilindró juntamente com sua amiga? Ainda podia pedir ajuda. E pensou em contatar sua irmã que vivia do outro lado do mundo. Bom Park.

Segunda-feira.

Cristiano Mamiya passou a madrugada dando explicações para a polícia enquanto tentava livrar a cara de Laura Socha, mas tratava-se de uma façanha, visto que a própria loura confessara que matara o leão de chácara e que iniciara toda aquela bagunça – provocou revolta nos amigos do traficante que apanhava feito um cachorro – , finalizando além do seu estilo. Estava patente que ela queria ficar presa, como se estivesse querendo fugir de retaliações ou de uma suposta vida desgraçada. Mas vida desgraçada era de Cristiano e obviamente se tornaria pior caso fosse trancafiado. A tensão aumentava e ele precisava conversar com sua irmã – seu maior contato – de qualquer jeito. Tinha direito a um telefonema. Foi acompanhado até o orelhão da delegacia e pegou um cartão telefone que dava sopa no bolso de trás de sua calça. Primeiro, efetuou uma ligação para Sidney Silvestre, sem sucesso. O celular de seu amigo estava desligado. O segundo e último foi para Bom. Seu rosto suava e tremia diante de uma possível frustração. A conversação prosseguiu em japonês.

- Sou eu, o Cristiano – disse ele. – Escute, não podemos divagar por muito tempo, quero dizer que estou prestes a ser preso junto com uma amiga e preciso ser aconselhado por você, pode pagar minha fiança, por favor?
- Espere um pouco... você está preso? Preso de verdade?
- Não, estou preso de mentirinha. Claro que é preso de verdade, envolvemo-nos em uma briga, eu estou sem dinheiro, mas pelo menos arrumei um emprego, só que no momento preciso que você possa me ajuda com a fiança. Eles já estipularam o preço.
- Quanto é?
- 300 reais. Por favor, veja quanto dá, mas se não tiver como me ajudar agradeço mesmo assim, terei de inaugurar meu primeiro dia na cadeia.
- Me dê detalhes sobre a sua prisão, Cris, talvez o Sidney possa te ajudar.
- Não, já liguei para ele e seu telefone está desligado. Eu gosto de uma mulher, uma enfermeira, cuidou de mim quando passei por alguns apuros, então resolvi ajudá-la com um problema de sua amiga que se drogava, ela simplesmente chegou no lugar e bateu no traficante, como os amigos deles se aborreceram com isto ela acabou com todos e eu tive de ajudá-la. Ela até acabou com a raça de um leão de chácara... isso certamente pode te assustar, mas eu gosto dela de verdade.
- Não acredito – disse Bom, sentada na cama de seu quarto, visivelmente preocupada com a situação do irmão. – Eu vou passar aí ainda esta semana, sim? Vou amanhã mesmo para o Brasil, mas antes irei pagar sua fiança, vou entrar na internerd e passar agora mesmo para sua conta, tá? Não quero ver você sofrer, eu te amo muito, querido.
- Muito obrigado, agora eu preciso desligar, já estão bafejando no meu ouvido para colocar o telefone no gancho. Beijos...
- E como está sua alimentação?
- Está ótima. Por favor, me ajuda na fiança agora mesmo. Tchau. – Desligou ao observar o semblante sério do policial, que logo depois o colocou para sentar na cadeira novamente. Preocupava-se com Laura e sobre seu destino. A outra menina juntou-se a ele e então, voltaram a conversar com o delegado, um grisalho gordo de olhos negros e bigode da mesma cor. “Ainda hoje vocês receberão a fiança, é de minha irmã que mora no Japão”, disse o nissei, observado por dois policiais e pela menina, “Por favor, eu queria saber o que vai acontecer com Laura Socha”.
- Sua namoradinha será presa – respondeu secamente o chefe. – Ela tem uma ficha expressiva relacionada à violência e vandalismo, a morte de um leão de chácara foi a gota d’água, logo, não temos mais porque deixá-la responder em liberdade. Já era. Você poderá sair daqui, mas ela não.
- E ela? – apontando para a guria ao seu lado, que nada falava, como na maioria das vezes. Foi só perguntar isto que um homem engravatado e de cabelos negros lambidos entrou na sala, cumprimentando a todos. “Ah, finalmente você chegou”, disse o delegado para o homem, que sorriu para ele e para a menina, que levantou-se rapidamente.

Cristiano observou os dois com assombro e um dos policiais retirou a algema que prendia os pulsos da menina. Mais assombro. Era o advogado da garota, que olhou para ele esboçando um risinho e perguntou para sua cliente: “E ele, o que ele fez?”, ela respondeu que participara da confusão, mas apenas para se defender dos agressores. O nissei tremeu na base e sabia que estava sendo constantemente observado pelos policiais e o delegado, então o homem de madeixas lambidas pediu para que o soltasse também, antes de perguntar quanto seria a fiança do dito cujo. “O mesmo que o dela”, respondeu o delegado. “Este maluco tem sorte de não ter ficha na polícia”, disse, como se mordesse de frustração, mas por outro lado regozijava-se por ter prendido Laura Socha, que no momento estava trancafiada em uma curta cela junto com outras 3 presas. Todas estas afastaram-se de seu estado ferido e suado, não queriam arrumar encrenca com a moça, relegando-a a uma solidão que ela já almejava abraçar. Cristiano quis falar com ela, mas o delegado respondeu que por hoje o assunto estava encerrado, que ele podia conversar com a loura apenas no dia seguinte e que deveria vigiar para que não tomasse o mesmo rumo de quem preocupava-se. Mandou embora. E ele foi junto com a outra responder o processo em liberdade.

Ao sair da delegacia notou que o advogado e sua cliente caminhavam em direção oposta, rumando para uma bicicleta prateada que o homem deixou no bicicletário. Cristiano queria tomar um bonde para voltar para casa, mas meteu na cabeça que não podia deixá-los sair dali sem dizer alguma coisa. Foi até eles e perguntou para a menina se dessa vez Laura seria presa e julgada em definitivo. “Sim, mas o Jorge vai dar um jeito de tirá-la da cadeia amanhã mesmo”, respondeu a morena de franjas, olhando marotamente para o advogado. “Que garantia vocês têm de tirá-la da cadeia, se ela tem uma ficha maior, é conhecida da polícia e tudo mais?”, indagou ele. “Bom, pelo menos vamos tentar. Para onde você vai agora?”, perguntou ela. Ele respondeu que voltaria para casa, pois pela manhã precisava comparecer ao seu novo emprego, mas ela entendeu que seria melhor ficar com ele para “orientá-lo bem” após o trauma. Deixou que seu advogado fosse embora e caminhou com Cristiano até um ponto de bonde, onde tomaram o veículo até o Largo da Glória, onde podiam andar até a casa dele na praia do Russel. Não disseram nada durante todo o trajeto, mas ele sabia que estava sendo observado pelos olhos curiosos de sua companhia. Diferente de Laura, a morena exalava um perfume discreto e ácido, casando com suas roupas pretas. Por dentro Cristiano se achava bem por estar prestes a receber uma mulher em sua casa – queria que fosse Laura – , por isto começou a preocupar-se com o estado do interior da residência.

Entraram. Havia pouquíssimas roupas espalhadas em cima de uma mala cinza e empoeirada – uma sobra da faxina que devia ser concluída – e pouca sujeira no chão. A pia estava abarrotada de louça, louça que foi acumulando a partir do momento em que ele se permitiu deixar lá para lavar depois. Respirou fundo, como se estivesse recebendo o presidente em sua casa. “Não repare...”, disse ele, sendo interrompido calmamente pela guria, “Não se preocupe, minha casa é bem mais bagunçada que a sua. Tem alguma coisa pra comer?”

Cristiano retirou uns filés de frango congelados e os esquentou em sua frigideira enquanto tocava música clássica. Vira a visitante se acomodar preguiçosamente na poltrona de plástico verde em frente à sala de estar, não queria perder o anfitrião de vista. Observou os movimentos de suas pernas e costas, extraía algum sentido sensual àquilo tudo, mas ele não percebia. Deixara cair uma leve brisa dentro de casa, pois abrira à janela, ainda mais precisava que um ventinho entrasse dentro dele, estava tão tenso que isto se refletia em seu cozinhar – deixando cair condimentos no chão – e a guria parecia se divertir ao vê-lo se atrapalhar. A cada risinho arquitetado por ela ele pensou em Laura, pensou que, caso não fosse a confusão que ocasionara a prisão dela eles possivelmente estariam entrelaçados um no outro na cama naquele momento. Terminou de cozinhar e preparou os pratos, colocando um pedaço grande de filé para cada, além dos frugais arroz, feijão e salada de alface. “Me desculpe, eu ainda não fiz as compras do mês”, disse ele, embaraçado. Sentaram-se no chão e comeram. Foi quando ela resolveu conversar.

- Você gosta muito dela, né? – perguntou a menina. Cristiano pensou que talvez ela poderia tentar fazê-lo esquecer de Laura. – Eu consigo perceber.
- Sim, gosto muito – respondeu ele, sério. – Eu agradeço por ter me tirado de lá.
- Ah, não mude de assunto, por favor – disse ela, sorrindo.
- Gosto apenas dela – reforçou Cristiano, ao mesmo tempo sentindo-se um idiota por dizer isto. – Então, porque você veio na minha casa? Não foi apenas para jantar, certo?
- Claro que não, também não precisa ser grosso – respondeu a menina, comendo apressadamente. – Achei que quisesse uma companhia enquanto ela não voltasse.
- Não, não preciso. Me desculpe – disse Cristiano. - Bom, eu preciso arrumar a casa, portanto gostaria que pudesse voltar outro dia, quem sabe na semana que vem?
- Não é assim que se trata uma dama, querido. Eu livrei o seu rabo e o meu, mas você até podia perguntar o porque de não ter livrado a Laura, só que ela está metida até o pescoço com ocorrências antigas, sabe disso. Quanto a ela não posso fazer nada, digo, até posso acionar meu advogado para fazer das tripas coração por ela, mas não sei se vai adiantar. Funcionando ou não, não é motivo suficiente para você se aborrecer comigo – disse a menina, cruzando os braços, emulando uma atitude revoltada que soara bastante falsa. Estava à frente do anfitrião e enquanto falava com ele, verificava todas as partes do corpo do interlocutor, dando uma sensação estranha que em Cristiano soou bastante desagradável. – E... eu agradeço por ter me ajudado a me livrar daqueles caras, a droga é minha tentação, se soubesse de pelo menos 10% da minha vida veria que...
- Tudo bem, pode ficar o tempo que quiser – decidiu ele, voltando a comer. – Qual o seu nome?
- Elizabeth. Você é o Cristiano, sei disso porque disse seu nome na delegacia. Te aconselho a não se preocupar tanto com ela a ponto de não querer dormir, ela sabe se virar muito bem nisso – disse a menina, tornando a comer, como ele. – Não querendo me intrometer em sua vida, mas... você não tem ninguém?
- Minha irmã, que está voltando em poucos dias – respondeu ele ao mastigar. – Porque você não faz um tratamento numa clínica de reabilitação?
- Estou fazendo, mas como você viu dou umas recaídas... Ei, vamos ao cinema amanhã de noite? Vou convidar alguns amigos, se você quiser...
- Qual é, você fala como se tudo estivesse bem comigo e não está – Disse Cristiano, aumentando o tom de sua voz. – Eu preciso ficar um pouco sozinho, quando você terminar de comer, por favor, retire-se de minha casa. Vou te contatar, mas não agora...
- Tudo bem, mas fique tranquilo, entendo que o que você sente pela Laura é verdadeiro, mas gritar não vai adiantar nada. Tome aqui o número do meu telefone – disse ela, escrevendo seu número em um cartãozinho dourado. Cristiano virou o papel para o outro lado e leu “Elizabeth Dushku, Dentista...”, seu telefone, seu número de registro, entre outras coisas. Realmente estava lidando com uma pessoa endinheirada e bem apessoada, que só passava por maus momentos por livre e espontânea vontade. Uma pessoa talvez tão ou mais problemática que Laura simplesmente por ter o que tem e mesmo assim se embrenhar em atividades ilícitas. Ele também podia se aproveitar que teria uma “amiga” nova servida de bandeja, algo que normalmente sempre prezava, mas algo em relação à Elizabeth não descia bem na mente de Cristiano. Tinha a certeza de que aquela abordagem significava uma tentativa de fazê-lo esquecer de sua robusta amiga, com o resultado de que não funcionaria. Logo, achou-se totalmente disposto a retirá-la de sua casa.
- Tá bem, tá bem, não posso lutar contra os seus sentimentos, mas se quiser sair comigo é só me ligar. Te achei uma pessoa muito bacana – concluiu ela, afastando-se e acenando para ele, que não respondeu e fechou a porta. O cheiro de Elizabeth impregnou o ar por mais alguns minutos até que o dono da casa pudesse permanecer quieto, olhando para a paisagem e imerso em pensamentos, coisas que deveria se dedicar daquelas horas em diante.

Laura estava presa e certamente seria julgada.
Sua doença estava firme e forte, impedindo que tivesse relações sexuais.
Ele teria de arrumar um emprego.

Seus 3 maiores problemas, tão importantes quanto a própria vida, e que não podia deixá-los de lado a partir daquela madrugada de segunda-feira. Marcavam 3 horas da manhã e seus olhos cansaram-se, seu corpo amoleceu-se, pedindo para que se derrubasse na cama, orando para que conseguisse acordar a tempo de se arrumar para o trabalho. O emprego inauguraria uma nova fase em sua vida, talvez não pudesse ser algo compatível à sal experiência profissional, mas ele não podia escolher, não por enquanto, sem contar que a idade começara a pesar – não obstante sua jovialidade corporal. Pensando mais uma vez nas investidas de Elizabeth, pensou que poderia ser perda de tempo tentar retirar uma mulher já atolada no mar de merda que significava a violência, mas Laura merecia uma vida melhor do que passar a existência inteira socando os outros. Seu protótipo de amor pulsava ao pensar em ter seu corpo franzino comprimido contra aqueles braços fortes, os seios enormes e intimidadores e aquela barriga bem trabalhada. Devia continuar, pois convenceu-se de que permaneceria muito tempo com aquela mulher. A irmã do nissei, Bom, poderia ajudá-lo.

Amanhecia há poucas horas de ter fechado os olhos no conforto de sua cama. As ondas mal batiam nas pedras, sabiás cantavam e ele pôde abrir a vista castanha para observar admirado o nascer do sol. Imaginou-se um vampiro diante de seu último crepúsculo, algo amedrontador que raspou em seus ossos como talheres roçando uns nos outros. Respirou calmamente baseado na oportunidade de emprego que abraçaria naquela manhã. Levantou-se preguiçosamente, marcavam 5:53 da manhã e sentiu-se muito feliz por estar vivo, mas muito triste por ter alcançado tão pouco em quase 4 décadas vê vida. Tocou seu rosto e seus braços. Parecia real e assombrosamente tão jovem que assustou-se, como se nunca antes percebera a elasticidade incrível de sua pele, a ausência total de rugas, os olhos ainda vivos e rápidos, os membros e a mente funcionando em extrema perfeição. Se considerava perfeito fisicamente, mas psicologicamente tinha ciência de que era um traste. E ele precisava recuperar sinais de amor, carinho e compaixão tomando Laura Socha para si. Se considerava um imbecil completo nas coisas do coração – como todos já sabiam – especialmente na prática de perseguir mulheres, quase sempre fizera este tipo de coisa e falhara, mas neste momento se achava certo, infalível, apesar das dificuldades. Merecia amar e ser amado, mas primeiro precisava se amar e para começar esta nova época, constatou que devia trabalhar e segurar o emprego até arrumar algo melhor, sem contar que algumas pessoas confiavam em sua capacidade – logo, não era tão fracassado assim.

Foi à geladeira e encheu um copinho com suco de limão, fez um sanduíche com queijo minas e mortadela defumada – que queixara-se bastante antes de comprar, já que a defumada custava R$ 1,50 cem gramas enquanto que a normal custava R$ 1,00 – , devorando-os com relativa alegria. Arquitetou planos para o futuro, como todo bom sonhador. Se Laura permitisse a colocaria para morar em sua casa, se casariam e teriam filhos. O ápice da felicidade viria nestes momentos, como cada pedaço de queijo trazido por camundongos para compor um inteiro. Não precisava se preocupar com Elizabeth, ela livrou seu rabo? Beleza, mas antes dela vinha Laura e ele não se permitia trair a loura.

Lá estava Cristiano, de banho tomado, moderando no leite de magnésia, um mocassim preto, terno e calça marrom, camisa de manga comprida branca e gravata vermelha. Seus cabelos estavam longos e ele precisava cortá-los, mas deixou esta tarefa para a tarde ou para a noite – já que àquela hora barbeiro algum estaria aberto – , quando provavelmente desfrutaria do primeiro dia de emprego. Sua pastinha preta estava dando sopa embaixo da cama, então ele pegou-a e espanou para colocar seus currículos. Pôs o relógio de pulso transparente e saiu de casa, trancando a porta até que presenciou um jovem uniformizado deixando ali perto um saquinho com o que seriam remédios. “Sim, os meus remédios”, murmurou Cristiano consigo. Agradeceu o office boy e adentrou à residência novamente, para deixá-los em cima da geladeira. Saiu dali apressado.

Da Glória à Rua dos Inválidos sua viagem foi cercada por certa turbulência. Uma colisão de bondes atravancou uma rua na altura do Passeio Público, em frente à praia – saindo da Avenida Beira Mar – , custando para o bonde em que estava passar sem maiores transtornos. Notou que pelo menos 5 pessoas se feriram no acidente, mas a paisagem tratou de deixá-lo de bancar o urubu, enquanto muitos passageiros acotovelavam-se para ver o tamanho dos estragos. Tinha um bolinho de fubá enrolado no bolso de seu paletó, Cristiano não sabia por quanto tempo esteve ali, queria comê-lo – porque parecia estar delicioso, mesmo assim – , não queria jogá-lo no lixo, considerou um desperdício, pois parecia estar limpo. Ingeriu-o. Mastigou e engoliu. O bonde já chegava aos Inválidos quando o nissei apertou a cigarra.

Caminhou uns poucos metros e deu de cara com um prédio amarelo de 4 andares, um típico sobrado que tinha na fachada “Agências Pedreira”, sobrenome do fundador e um dos diretores da Escola Municipal Franz Kafka. Em um momento imaginava encontrar Arísia e Lídia correndo nas dependências do local, mexendo nos computadores, brincando de duelo Jedi com os cabos das vassouras ou simplesmente gargalhando alto para incomodar quem desejava trabalhar. Mesmo assim, a vida percorria naqueles corredores, nas salas...entrara no local e dissera ao porteiro que fora chamado pelo líder, recebeu um “Ah, você é que é o Cristiano Mamiya?”, assentiu e acabou sendo encaminhado a um amplo escritório, onde foi recebido por uma mulher, uma gorda de dedos aparentemente pegajosos. Seu rosto escondia-se em um chapéu coberto de penas de pavão e tal qual seu terno apertado, a cor rosa predominava. “Bom-dia, sou o Cristiano Mamiya, indicado pelo líder para...”, foi interrompido.

- Bom-dia, querido, já sabemos quem é você, meu marido já me passou as coordenada ainda ontem – disse ela, rapidamente enquanto tomava um gole de suco de manga. – Você está aqui para trabalhar como auxiliar de serviços gerais, creio que saiba o que seja isto, certo? Bom, vamos ser diretos: trabalhará de segunda à sábado, das 9 às 18:00, receberá um salário de R$ 1000 reais, uniforme será pago por você...digo, seria pago, pois ele comprou 2 para ti, e como você provavelmente deve saber o esquema, é para limpar banheiro, sala, corredor, tudo. O espaço é pequeno, você irá limpar tão rápido que depois reclamará de estar ocioso. Então, é isto, chamarei uma das funcionárias do RH (recursos humanos) porque preciso voltar à minha escola. Boa sorte.
- Obrigado... – Cristiano agradeceu com um resmungão, suas sobrancelhas arqueavam-se de raiva e decepção. Ele não desejava, em 1000 anos que fossem, ser alçado a faxineiro. Trabalhara como professor, como se “rebaixaria” a limpador de privada? Tremeu na base, apoiou-se na parede para não cair, tamanho o baque sofrido. Seu coração parecia querer sair para fora, ele pensou na música “O bêbado e o equilibrista” da Elis Regina e lacrimejou, recordando os momentos solitários em que passou no interior do Rio de Janeiro, vagando por aí, procurando casa e emprego, antes de juntar tudo e voltar para o Japão. A funcionária apareceu subitamente e presenciou o semblante derrotado de Cristiano, enxugando as lágrimas, tentando se recompor enquanto dizia “não conte nada para ninguém”, para ela, que concordou de pronto. Após uma rápida conversa e reconhecimento de área ele foi dispensado para começar no dia seguinte.

“O bêbado e o equilibrista” sempre o fazia chorar, especialmente em momentos desoladores e frustrantes. Ele devia estar feliz por ter conseguido um emprego, mas não, amargava seu próprio coração e mente na tristeza de não ter sido o que ele queria – ou algo próximo disto – , seu corpo apenas cumpria o que ele queria, as lágrimas enfim pararam de descer após ser enxugadas com os braços finos por um bom tempo. Não se importava pelo risco de ser chamado de “viado” por estar chorando, pois finalmente entendera que não deveria se preocupar tanto com as pessoas – mas ele voltaria a se preocupar com elas quando estivesse 100% em pé – , então, o que Cristiano faria naquele momento além de acabar com o chororô? Devia comunicar a quem quer que fosse que reiniciaria sua vida como empregado e que os recursos da casa – comida, contas, etc. – seria suprido. Não tomara seus remédios. Encostou-se na parede de um dos inúmeros sobrados e ergueu sua vista em direção ao morro de Santo Antônio, após os Arcos da Lapa. Laura prosseguia presa na delegacia do Flamengo, mas certamente seria transferida para uma carceragem maior até ser julgada e posta de vez atrás das grades. Ele necessitava dela. Precisava de um toque, um alisar, um beijo, um corpo imprensado no outro... algo que pudesse definitivamente enxugar o choro de sua mente e coração, porque enxugar os dos olhos é fácil. Tinha o telefone de Laura, mas não podia ligar – confiscaram seu celular ao entrar na cadeia – e não sabia nada sobre seus parentes ou conhecidos. Ele poderia falar com Elizabeth para aplacar sua solidão. Não tratava-se de uma pessoa ruim, pelo menos aparentemente, e aparentava também gostar dele, logo, porque perder tempo chorando as pitangas no meio das ruas cariocas? Precisava sossegar.

- Alô – disse Cristiano, no orelhão. Sendo celular, as unidades de seu cartão corriam como água. – Quero falar com você, Elizabeth. É ela quem está falando comigo agora, certo?
- Sim, querido, claro que é – respondeu ela, em um tom de voz mais fino. – Você dormiu bem? Estou preocupada, você parecia tão tenso quando con...
- Sim, justamente por ter ocorrido o que ocorreu com nós três – disse ele. – Eu já resolvi o que tinha de resolver esta manhã e estou voltando para casa. Onde você está agora?
- No meu trabalho, à noite eu pego a faculdade.
- Qual?
- A UFF, em Niterói, mas se você quiser pode aparecer aqui no meu trabalho no horário de almoço ou quer que eu dê uma passada aí? Trampo em Botafogo, sempre passo aí perto do Russel. Tá bem?
- Tá bem, não falte, sim? – indagou ele. Acabou por aí.

Elizabeth – não obstante seu uso de drogas – comportava-se como uma pessoa absolutamente normal, segundo ele, não apresentando sinais de loucura ou qualquer coisa próxima disto, podendo inclusive passar um jeito na qual se podia confiar, uma personalidade um tanto firme e própria. Cristiano sabia que não podia definir as pessoas por uma prática peculiar na qual participavam, já que a menina de franjas negras corre totalmente diferente de qualquer clichê. Também sua iniciativa sugeria uma tentativa de fazer crescer uma amizade após a turbulência, mas mesmo que tivesse assegurado de que não limaria Laura aos poucos, o que mostrava era o contrário. Estava convencido de que seria induzido a esquecê-la, entretanto, convenceu-se de que não jogaria o jogo da menina tão cedo. Iria vê-la em sua casa, sairia em alguns encontros e tudo mais, mas apenas para angariar um resquício de vida social, a formação de novos amigos, futuras pessoas nas quais se podia confiar (ou não), experiências feitas, algo para colecionar. Portanto, não custava nada sair com outras pessoas que não fosse Laura. As coisas se encaminhavam. Ele tinha um emprego e uma pessoa disposta a fazê-lo sair do isolamento. Laura estava presa sim, mas ainda atada a ele – ao menos era o que parecia. Depois de refletir sobre isto, sua mente deu lugar à busca de sua cura. Sofrera de uma doença rara. A mesma doença que acometia Sidney Silvestre o acometia, todavia, de forma e reação diferentes. Desde a última vez em que se viram percebeu que o indiano não sofria do mal, mas desfrutava dele, aparentemente não sendo afetado ou sequer chamuscado pelos sintomas desagradáveis. Caso Cristiano tomasse Elizabeth nos braços e fosse para a cama com ela teria de explicar o motivo no tal teve de negar fogo, e mesmo mostrando um ponto de vista liberal em tratar a vida, talvez não poderia suportar o que lhe seria dito. Teria de interrogar sua irmã sobre uma possível cura da doença, mesmo tendo ouvido por muitas vezes que ela não sabia de nada. “Então, terei que viajar à procura dos meus parentes e de Sidney”, pensou ele, entrelaçando os dedos. “Ninguém nunca me dirá nada, não posso contar com eles, eu já devia estar convicto de uma merda dessas”. Exato, sabia que o resultado seria este, mesmo se ameaçasse meter uma bala na cabeça de Bom ou de Sidney. Mais um problema para cuidar.

Em sua residência, tratou de ligar o computador, nervoso e sedento por informações sobre a cura, informações que possivelmente seu melhor amigo não tinha a menor pressa em saber. Estava sozinho nesta, mas por onde começaria? Enumerava os sintomas da doença, mas há um bom tempo procurava sobre o nome no Google e não achara nada, a medicina moderna ainda não poderia respondê-lo sobre a cura ou qualquer medida paliativa que fosse. Desde a infância tivera de segurar os males nas costas. No momento, deixou a página do Google aberta, as mãos formigando, como se tateassem algo invisível, queria escrever alguma coisa, mas lembrara pela enésima vez que pesquisas pela internet em nada ajudavam. A melhor medida a tomar seria procurar sua família, ser duro quando tivesse de ser, pois nada teria a perder, sua vida já era uma merda em todos os sentidos. Ele permaneceria o resto que sobrava da manhã sentado naquele banco em frente ao monitor caso não lembrasse de que já podia visitar Laura. Saiu dali, tomou um banho rápido – mas não trocou de roupa – preparou duas marmitas com filé de frango, salada e arroz com feijão e colocou-os em sua mochila. Quem sabe não arrancaria um beijo naquele dia?

Saiu de casa, esquecendo novamente de tomar os remédios e tomou um bonde até a delegacia. Lá, deixou de cumprimentar os policiais, já que queria falar diretamente com o delegado e também, porque não os suportavam. “Vai ter que falar com a gente antes de falar com ele”, disse um dos oficiais, um bigodudo de cabelos negros. “O que está fazendo aqui, se está respondendo o processo em liberdade?”, ele perguntou. “Vim visitar Laura Socha, minha amiga que está presa aí”, mal terminou de concretizar suas palavras quando outro policial perguntou sobre o que ele tinha na mochila. Cristiano prontamente desceu-a até as mãos deles e abriu, mostrando em seu interior duas marmitas quentes enfurnadas em dois livros: “O Apanhador no Campo de Centeio” e “Abarat”, respectivamente de J.D.Salinger e Clive Barker. “Estou querendo oferecer a ela este almoço antes dela ser transferida”, disse o nissei para eles. Eles disseram que podiam tomar conta das refeições a partir dali, mas Cristiano protestou, terminando por bradar o nome do delegado. Este apareceu da porta de sua sala e o reconheceu, perguntando o que estava fazendo ali. Ao receber a resposta disse: “Tudo bem, você terá 10 minutos para falar com ela”, após a revista.

Ao adentrar no local, encontrou Laura aparentemente dormindo, de rosto para a parede, o corpo de lado e a respiração serena. Seus longos cabelos louros estavam soltos, podia-se ver o prendedor solto no pequeno criado mudo próximo a beliche que ela ocupava sozinha. Sim, ocupava uma cela sozinha, pois já fora rotulada como pessoa violenta e forte o suficiente para matar qualquer pessoa. Este mesmo tipo que atiçava o sexo de Cristiano, e este sentiu-se tenso e excitado ao vê-la adormecer tão tranquilamente, mas teria de acordá-la.

- Laura... Lau, sou eu, Cristiano – murmurou ao pé do ouvido da mulher, ao mesmo tempo em que temia tomar uma bordoada daquelas. Acordava-a sacudindo com leveza o ombro direito dela, seu desejo era abraçá-la por trás e sentir seu corpo naquele roçar arrepiante.


Última edição por Admin em Qua Dez 01, 2010 8:11 pm, editado 1 vez(es)
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Mensagem  Admin Sáb Set 25, 2010 12:24 am

- Eu sei que é você... mas, só veio aqui para me paquerar? Não vamos poder namorar ou casar comigo estando presa – murmurou ela, fitando-o com preguiça. Cristiano não imaginara ser jogado na parede tão rápida e surpreendentemente. Então, Laura já tinha total ciência de que ele abraçaria qualquer possibilidade de tê-la nos braços, de uma carícia passando por uma mão boba e um beijo na boca. Mesmo assim ela não estava tão desejosa em ter alguém como ele, mas nutria muita simpatia pelo sujeito. Não perderia seu tempo dizendo que consideraria um irmão, mas a admiração que fizera crescer por conta do companheiro trouxe novos ares à sua vida, embora prosseguindo com muitas dificuldades. Duas pessoas em vidas difíceis, a simpatia era mútua e a loura achou-se capacitada para dar abertura para as investidas do nissei. Naquele momento, se olhavam sem dizer uma palavra, um engolindo a respiração do outro. – Foi mal, sabe que eu costumo ser grossa de vez em quando.
- Eu estou vendo um jeito de você sair daqui, minha irmã está voltando do Japão e poderá nos ajudar.
- Não, não precisa – disse ela, convicta. – Tô querendo passar um tempo aqui na cadeia, minha vida lá fora não está valendo a pena, portanto prefiro voltar pro lugar onde eu costumo reinar. Amanhã eu serei julgada e...
- Não, não fala isso – impeliu Cristiano, tocando em sua boca. – Você pode ter uma vida decente comigo, não vai adiantar ficar na cadeia só porque você acha um lugar melhor. Não quero ver você desse jeito. Está certo que temos personalidades diferentes, mas você tem que entender que agora tem uma pessoa que se importa muito contigo. Eu estou apaixonado por você, a gente pode fazer muita coisa juntos, preste atenção, podemos sair da capital se você quiser, eu posso arrumar um trabalho no campo e podemos viver em uma casa isolada, a gente pode até se casar depois, o que você acha? Sério, você vai entender que podemos formar uma família feliz ou pelo menos algo próximo disso, querida. Eu estou disposto a largar tudo para ficar contigo, mas primeiro, deixa eu tentar te tirar daqui, deixa eu tentar mostrar que sou um sujeito decente pra você!
- Que desespero todo é esse? – indagou ela, sorrindo. Cristiano constrangeu-se, temendo que seus planos fossem minados logo ali. – Eu encontro segurança mais aqui que lá fora...
- Você simplesmente... como diremos, se meteu em uma confusão, ninguém te procurou nem nada, não é obrigação sua ficar comigo, mas estou te dando uma oportunidade para tentar reorganizar a vida e ter uma família. Depois dessa você não precisa mais entrar em brigas por causa dos outros, estou te propondo uma vida no interior, sem perturbações nem nada.
- Ah, seria muito chato viver assim como você deseja, né? – indagou ela, voltando a sorrir. Cristiano entendeu que estava sendo testado.
- Sei que você se conhece muito bem, mas até quando vai confiar na sua força e na sua violência... – Laura não permitiu que seu visitante concluísse a palavra, tocou as maçãs de seu rosto, aproximou-se o seu no dele e beijou sua boca. Enquanto libertava suas mãos, que encontravam as costas e a cintura da mulher, pensou que todo aquele esforço merecia este fim. Logo após isto, tudo ficaria bem caso ela concordasse em ser liberta. Bom Park ajudaria nestes tramites, além de Elizabeth, então, por que persistir em permanecer trancafiada numa cela por anos a fio quando tinha oportunidades de melhorar a vida?
- Deixa eu te ajudar – murmurou ele, enquanto beijava o rosto e a boca de Laura. Suas mãos, mesmo envoltas no corpanzil, mantinham-se estáticas. Ela nada falava, retribuía o carinho com beijos ainda mais intensos. Tirou a camisa dele e beijou seus mamilos, deixando-o totalmente acuado, mas não conseguiu se livrar dos braços fortes da mulher, que o fez deitar-se na cama, e ela apenas perguntou: “Você trouxe camisinha?”, ele respondeu que não, pois não imaginava que chegariam a tal ponto naquele dia. Laura contentou-se com a resposta negativa e o abraçou carinhosamente. Este pôde sentir o peso dos seios de sua companhia comprimindo seu peitoral como uma pedra (sentia um misto de prazer e aflição). Cristiano constatou que nunca a teria completamente caso não transasse com ela, e não podia, mas não diria no momento. Não ruiria a relação que estava se formando. Os 10 minutos terminaram e a carcereira chamou o visitante para se retirar. Antes de descer da cama, disse à Laura para deixar entrar em sua vida de uma vez por todas, começando a concretizar seu plano, mas precisava do aval da criatura.
- Tudo bem – respondeu ela, que beijou-o na boca novamente. Cada vez mais que encontrava a boca de Cristiano seus dentes vinham primeiro, provocando certa dor ao atritar com a carne dos lábios de seu amigo, que não disse nada sobre. Cristiano acenou para ela, que nada respondeu e ao sair da delegacia, deu de cara com o advogado de Elizabeth.
- O que ainda está fazendo aqui? – indagou o homem de cabelos lambidos. – Veio visitar a senhorita Socha?
- Sim, e o senhor?
- Estou fazendo das tripas coração para tirá-la desse chiqueiro, estive marcado para conversar com ela neste momento e vamos ver se ela aceita o que eu e Elizabeth temos para oferecer.
- Ela confessou ter matado alguém, vai ser muito difícil tirarem ela daqui – disse Cristiano. – Mas, estou confiando na capacidade de vocês.
- Isso mesmo, farei o meu possível, mas não esquente a cabeça por isso, só quero que torça por mim. Tenha um bom dia – concluiu o advogado, que cumprimentou o delegado e foi abordado pelos policiais. Cristiano não tinha mais nada para fazer ali, portanto, voltou para a sua casa.

Sentiu-se vazio, sentado na cama, aguardando o dia seguinte chegar. Também aguardava sua irmã, mas tinha ciência de que Bom não chegaria tão rápido. Não queria assistir televisão, muito menos ouvir rádio, o gasto com despesas era tanto que teve de vender um fogão novo para usar um velho, utilizava as mesmas roupas até esfarrapá-las, além de ostentar poucos pares de cuecas e sapatos. Possuía também certo desleixo para com a higiene pessoal. Teria de mudar seu estilo porco de viver, caso conseguisse ter Laura... ou até mesmo Elizabeth.

Deu uma olhada no computador e notou que um email esperava por ele: “já estou chegando querido, te ajudarei no que você quiser”, disse ela em sua correspondência. Sim, isto seria ótimo, pois mesmo não tendo condições de ajudá-lo na questão de sua doença poderia deixar uma pista... não, Cristiano não estava tão otimista assim. No momento teria de procurar o que fazer, sua vontade era sair da cidade e se aventurar no interior, ou então passar o dia na internerd procurando uma nova namorada, mas não tinha saco para isto, precisava descansar, seu corpo pedia um aconchego de cama. Começou a chover, o que só reforçou os pedidos para que ao menos ficasse dentro de casa. E ficou. Transitou de meia pelos cômodos e ligou o computador, enquanto observava a carta com a conta de luz molhar embaixo da porta. Não desfrutava da solidão tanto quanto antes, estava convencido de que com o tempo seu organismo rejeitaria a misantropia caso tornasse a se relacionar com os outros. Mas, ele queria mudar, precisava ter um emprego, dinheiro e uma família, necessariamente nesta ordem. Pegou o telefone e ligou para Elizabeth. “Sim, pode vir aqui, já estamos terminando o expediente”, disse ela, apresentando alegria em seu tom de voz, tal alegria animou o coração do quarentão, que o fez desligar o telefone e rumar para o escritório da moça.

Elizabeth trabalhava na rua Voluntários da Pátria, entre a praia de Botafogo e o Humaitá, rumando para a Lagoa e Gávea. Lá residiam os mais abastados, que encontraram um local mais tranqüilo para morar após a destituição do Centro carioca. Como se sabia, a classe mais pobre concentrava-se na face norte do centro (nos morros da Conceição e Providência, além de boa parte da Zona Portuária) e mais ao sul, no morro do Castelo, onde ele sabia ser um local posto nas mãos de Sidney Silvestre. Andar de bonde pela Zona Sul consistia em uma experiência gostosa. Marcavam 16:40 e ele teria de deixar as boas sensações para pegá-la, pois detestava frustrar alguém. Saltou do veículo e chegou ao endereço. Nada mais que um amplo sobrado, um quadrado branco cercado por grades verdes e jardins bem floridos, dois andares e uma campainha em forma de rosto feminino. Anunciou seu nome pelo interfone e a porta gradeada se abriu. Ainda ao ar livre, percorreu poucos metros ao lado das plantas e na outra porta – uma branca – foi recepcionado por uma Elizabeth radiante e de penteado mudado. Vestia uma calça balão cinza, salto alto negro, uma camisa branca meio transparente – dando para observar seu sutiã alvo – e quanto às franjas, estas desapareceram, dando lugar a um penteado jogado de lado, evidenciando sua testa saliente. Um humilde decote e um colar prateado. “Tudo bem contigo?”, perguntou ela, na ponta dos pés para beijar o rosto do visitante. “Meu advogado ligou e te viu saindo da delegacia. Não se preocupa, porque estávamos fazendo tudo para ela sair dessa”, disse ela, evidenciando a fofura de suas bochechas e a espontaneidade de seu sorriso.

- Sabe que mesmo assim parece que você não se importa tanto com ela? Digo, você possivelmente deve ter percebido o esforço hercúleo que ela fez te protegendo durante todo este tempo e me parece que você está retribuindo esta ajuda tentando colocá-la para fora, mas tem algo que não me desce... sabe, não precisa fazer isto para conquistar minha simpatia, isto você já tem, faça porque ela se considera sua amiga verdadeiramente – disse ele, fitando bem nos olhos da menina, que prontamente tentou segurar o riso.
- Eu não sei do que você tá falando, meu desejo em tirá-la dali é genuíno, sei muito bem que é minha amiga, especialmente por tentar me livrar dessa merda que são as drogas, agora está falando que tô fazendo isso por sua causa? Olha, não seja tão convencido assim, você nem é tão bonito... - disse ela, circundando Cristiano com a mão na boca risonha. - Não se preocupa, deve saber que estou interessada em você, mas não mistura as coisas. Sem a Laura eu já estaria morta, eu já dei muito trabalho pros meus pais, é como se fosse um anjo da guarda pra mim, eu já cometi o erro de testá-la e quando vi que realmente gosta de mim decidi não brincar com os sentimentos dela... mas o desejo de me drogar é mais forte, não consigo...
- Se interna, então – disse Cristiano, tocando os ombros dela. - Fique uns 3 meses de molho, depois você vê se tem possibilidades de sair para fora de novo. Usando drogas só vai fazer Laura sofrer, vai fazer seus pais sofrerem... se bobear fará sofrer até este que vos fala, sabe? A partir do momento em que acompanhei a Laura e tiramos você da boate não pude ficar indiferente a você e sei que você gosta de mim. Me deixa gostar de você, mas da forma correta.
- “Forma correta”? Não existe isso, cara – disse ela. - Mas, voltando algumas frasezinhas, o que você disse sobre internação está certo, eu preciso me isolar um pouco do mundo pra voltar fortalecida e curada. Mas, pensarei nessa possibilidade mais por sua causa – enquanto falava, acariciava os braços dele, deixando-o excitado de pronto. - porque sei que estou falando com uma pessoa muito bacana. Fico surpresa por você não ter ninguém além de um “melhor amigo” que provavelmente não se importa contigo... me passa uma aura de carência, isto foi o que percebi na primeira vez em que te vi. Do que você está precisando, afinal?
- Quer mesmo saber? Preciso de uma namorada, preciso de um emprego bom e preciso de novos amigos, mas não costumo forçar a barra – respondeu ele. - Eu quero ficar com Laura, você sabe disso.
- Nunca passou pela sua cabeça que Laura talvez esteja apenas “ficando” contigo, sem nenhuma vontade de querer namorar sério? Ela sempre foi assim, nunca namorou com ninguém. Primeiro porque os homens a temem, segundo porque sempre foi péssima nas coisas do coração. Te aconselho a não ir com muita sede ao pote, porque é temerário, vai acabar caindo na rua da amargura de novo. Talvez pudesse namorar com uma pessoa isenta destes probleminhas... - disse Elizabeth, passando suas pequenas e frágeis mãos para as mãos de Cristiano, bambeado por sentir um calor intenso vindo daqueles dois membros. - Olha, estamos entrando com um “habeas corpus” para fazê-la responder o processo em liberdade, assim como você, terei as respostas do advogado hoje, o julgamento dela é amanhã e estamos nos matando para isso... quer dizer, mais ele que eu, mas tô deixando tudo nas mãos dele, é um cara confiante, advogado da família por mais de 20 anos, é sério. Tudo o que devemos fazer agora é aguardar as respostas. Por isso, mesmo que seja praticamente impossível peço um pouco de calma, querido, então, vamos passar o dia comigo hoje, pode ser?
- Tá... tudo bem – respondeu o nissei, tentando não se embaralhar em suas confusões. Não tinha a confiança em Elizabeth tão firme quanto em Laura, embora fosse a melhor amiga da moça, existem “amigos da onça” por toda a parte, mas o propósito mais “subversivo” que a pequena poderia arquitetar era afastá-lo da loura para ficar com ela, o que ele já tinha desconfiado. Mesmo assim, convenceu-se de que não podia desvencilhar-se das garras da menina, pois nutrira curiosidade em conhecê-la, não desistira de Laura, mas deveria ter certa garantia se ela fosse julgada culpada e amargasse uns anos na cadeia. Era certo de que retornaria para a solidão e tinha quase certeza de que cada vez mais a perseguição perpetrada por Elizabeth adquiriria tons fortes e até agressivos. Fato é que a pequena testudinha o queria, nem que fosse para usá-lo por algumas semanas e após o prazer correr atrás de outro. Laura, não obstante gostar dele, não sentia exatamente a mesma coisa, portanto, pensou Cristiano, se a deixasse talvez ela nem poderia se importar, mas ao refletir sobre isso focou no que Elizabeth disse sobre ela: é péssima nas coisas do coração. Mas, mesmo assim ele teria de estar preparado para mais uma leva de frustrações. Não conseguiria abraçar a gaiatice como Sidney e se odiava por isto, por ser mui sisudo e justamente por isto acentuar cada vez mais uma porção de sofrimento em sua vida, mas não ousaria dissimular-se para conseguir o que quer. Elizabeth o cercava como um animal rondando sua presa e cedo ou tarde daria um bote expressivo e ele precisava decidir se cederia ou não. Coisa rara uma mulher não bonita e bem cuidada gostando dele, aparentemente sem defeitos e, apesar de drogada, portar uma sobriedade impressionante quando em estado normal. Se fosse se embrenhar na paixão e no amor oferecidos por ela o nissei teria de fazê-la desistir das drogas, onde viria a internação por meses em uma clínica de reabilitação. E então? Prosseguir nos encontros com Elizabeth certamente faria a relação com Laura ruir aos poucos, seus sentimentos seriam trocados para outra pessoa gradativamente (especialmente um sujeito tão carente como ele). Cedo ou tarde teria de escolher.

Então, eles saíram da Voluntários da Pátria e rumaram para o Jardim Botânico, bairro próximo à Lagoa, onde puderam sentar-se em bancos de xadrez ao ar livre, apreciar o vento frio e observar a lagoa Rodrigo de Freitas com seus pedalinhos e marrecos. Atrás deles cintilava o mirante no Corcovado, em contato com os tímidos raios solares. Fora isto, a Mata Atlântica pulsava de tal forma que sua “respiração” fora sentida por Cristiano, talvez por ajuda de sua condição especial. Sentiu-se estranho ao estar em campo aberto, experiência sentida há pouco tempo, e cada vez mais que se encolhia, instintivamente acuado, era abraçado carinhosa e insistentemente pela garota, que aproveitava todo o momento para colar em seu corpo, gostava, o queria e ele sabia disso.

- Cara, você tem o corpo tão frio – disse a mulher, encostando-se ainda mais no tronco de Cristiano. – Bem geladinho. Deve ser porque não é de pegar praia, você bem que deveria dar umas voltinhas de vez em quando pela orla, mas se o seu problema for a companhia, pode deixar que eu irei contigo sempre que eu puder, hein?
- Agradeço muito, mas eu sou assim mesmo, só que também não gosto muito de praia... na verdade, entrar em praia é um programa que não dá para fazer sozinho, é como ir ao cinema, muitas vezes não faz sentido participar sozinho, isso é, se você estiver a fim de prestar atenção em cada coisa do filme, mas para isso eu baixo as coisas pela internerd. Eu estou sozinho há muito tempo e pretendo mudar isto, com Laura me veio a oportunidade e...
- Eu sei disso, não precisa contar uma biografia – reclamou ela, travestindo em sorriso. – Quer dizer que você pegou um trabalho que não imaginava? Se está pensando em sair pode tirar o cavalinho da chuva, fique até arrumar algo melhor. “Ah, mas como vou arrumar algo melhor se estarei enfurnado na minha ocupação...?” Eu posso te ajudar com isso, tenho meus contatos.
- Você me parece uma menina quase perfeita, por que cargas d’água se destrói usando drogas? – perguntou ele.
- Eu simplesmente gosto da viagem que ela proporciona – respondeu Elizabeth, com naturalidade. – Mas, eu só uso cocaína e ando dando umas bicadas na heroína, porque é muito melhor do que fazer sexo, a sensação prazerosa é multiplicada por 1000 e quando você vê, está sendo escravo daquilo... é algo tão clichê de descrever que isso deve estar te dando enjôo, veja a sua cara – esfregou com a mão direita os cabelos do amigo, fazendo-o rir timidamente.
- Bom, então você não precisa fazer sexo – disse ele, sorrindo para ela.
- Preciso sim, mas praticamente não há gente bacana o suficiente para isto. Eu me cansei dessa galerada de baile, de boate, com suas gírias de merda, seus trejeitos e tudo mais, eu quero ficar quieta e tranquila em algum lugarzinho esquecido. Tenho muitos colegas, mas de tão medíocres que são podem ser dispensados numa boa. Não quero deixar para mudar de ares na velhice, quero ter alguém que possa me dar a mesma carga de amor que eu poderia dar a ela, entre outras coisas. Embora não pareça, sou uma menina bem pensativa quanto ao meu destino – Elizabeth divagava enquanto observava o horizonte, além dos limites da lagoa, imersa em pensamentos e propostas, pensando em Cristiano e no que o destino reservaria para ele e Laura. Ela e ele já sabiam que Laura não podia escapar incólume da condenação, mas não custava nada andar contra a ordem normal das coisas, por isso mesmo o advogado estava lá, tentando soltá-la.
- Vem cá... – Cristiano a abraçou de frente e pôde sentir o cheiro natural da menina sobrepujando o fraco perfume que usava, e este mesmo odor natural era tão gostoso que ele se segurava para não efetuar mordiscadas nos ombros desnudos e nas costas dela. Talvez ela gostasse, mas não queria afastá-la de forma alguma, já afastou pessoas demais em sua vida. Elizabeth o fitou como se balbuciasse, se pedisse alguma coisa, sua boa com lábios finos, o busto farto (não tão farto quanto o de Laura), os olhos pontuados por cilios chamativos e a testa enorme com uma mecha do lado esquerdo passaram a ser a coisa mais bonita do mundo. Podia sentir sua respiração, ofegava e ao mesmo tempo pedia para ser beijada. Ele não pôde resistir: envolveu-a com os braços nas costelas da moça e a beijou calmamente, enquanto ela fincava seus dedos pequenos e magros nas costas dele, espremendo seu corpo no dele, trunfante por ter conseguido arrebatá-lo para si, pois genuinamente o queria e o desejo um pelo outro ficara ainda mais evidente. A voracidade com que a boca de Elizabeth mergulhava na de Cristiano o assustava, mas não pensara em desistir, pois não perderia o momento. Cada vez mais distanciara-se de Laura e do que sentia por ela, a partir dali se deixara envolver por outra pessoa, estava vencido pela situação degradante da mulher forte. A cadeia, condenação certa, a destituição da vida normal por alguns anos... sendo assim, pra que perder tempo com advogados? Seu destino era este e estava na hora de Elizabeth e Cristiano darem o braço a torcer.

No fim da tarde, se encaminharam para a casa dele, no Russel. As ondas batiam com mais revolta, e a brisa, como sempre, invadira o interior da casa. Elizabeth vasculhou os cômodos em plena curiosidade e seu anfitrião perguntou se gostaria de comer alguma coisa. Na recusa dela, sentou-se na cama parcialmente nervoso, e ao vê-lo ali Elizabeth tirou a camisa, avançando calmamente sobre ele de sutiã, alisando seu peitoral e respirando há milímetros de seu rosto. Novamente se beijaram, desta vez com mais convicção que antes. Cristiano apalpou as nádegas da pequena, enfiou seu dedo indicador esquerdo no ânus da garota, o que provocara risos nervosos vindos dela. Parou. Elizabeth pegou a mão direita de seu parceiro e enfiou-os na vagina, tentando ser masturbada por ele, que assentiu e começou a fazer o trabalho sozinho. Sensação indescritível vê-la gemendo com o rosto colado no dele, enchendo-o de beijos nos lábios e no pescoço, explicitando o desejo que sentia por ele, que com a outra mão tentou tirar a calcinha de Elizabeth a partir da bunda, mas não conseguiu: o corpo desta estava tão imprensado sobre ele que limitava seus movimentos. Logo, pensou que teria de declinar o convite para o sexo, pois sua condição especial não permitiria chegar até o fim. E ele iniciou a recusa, dizendo que não podia, mas explicando tudo de uma vez.

- Está... está falando sério? – indagou ela, surpresa. – Você... não pode transar porque sofre de uma doença sexual? Se você transar, pode morrer? Puta... puta que pariu, sinceramente nunca imaginei que existiria coisas desse jeito, sei que existe uma porrada de doenças esquisitas, mas esta eu nunca ouvi falar!
- É isso, eu não posso... infelizmente só podemos ficar nas carícias, ou então podemos nos masturbar... – Cristiano sentia-se patético até o osso ao dizer coisas como estas. Observou Elizabeth levantar-se da cama impaciente, com uma alça do sutiã caída, mostrando seu lindo e róseo seio esquerdo, além do quilinho a mais que sobrava em seu ventre. Esgueirou-se na janela que dava para a praia, respirou fundo e lacrimejou. Depois riu, imaginando-se tão ridícula quanto ele naquela situação. “Não vai dar pra namorar com ele desse jeito, impossível”, pensou consigo, cerrando os punhos. Queria ir embora, mas pensou que se fizesse isto o magoaria, então, deitou-se na cama de bruços, segurando o choro. Cristiano permaneceu por 5 minutos pensando no que podia fazer, mas teve medo de qualquer atitude que tomasse. Fitou Elizabeth deitada de bruços, sua respiração diminuindo, sua boca entreaberta e os olhos fechados, decidida a dormir ali e resolveu juntar-se a ela. Queria compartilhar de sua dor. Terminou por estar em cima dela, beijando suas costas e costelas lentamente, fazendo-a mexer as pernas e a cintura, onde fora encaixada no corpo dele, ambos não diziam nada, engancharam-se, Cris pegou o cobertor e cobriu-os, onde minutos depois fecharam os olhos em definitivo naquela noite.

Terça-feira.

Elizabeth tinha despertado, assomada por pesadelos. Seu coração batia tão forte que ela não se lembrara de ter ocorrido tal sensação tão cedo, só quando se drogava. Olhou para a esquerda de sua cama, observando Cristiano dormindo tranquilamente, o total oposto da menina. Seus cabelos semilongos ocultavam parte de seu rosto e ela se achava incompleta, solitária por estar acordada no meio de todo aquele escuro. A janela estava aberta, portanto a sensação de ser vítima de uma invasão – seja de um animal ou monstro – a assustava cada vez mais, não se sentindo mentalmente habilitada nem para ir ao banheiro, e como morria de medo, a vontade de urinar era genuína e ela precisava romper toda aquela besteira para chegar ao vaso sanitário. Embora estivesse enroscada à Cristiano, sentia-se tão sozinha que seus pelos não paravam se eriçar. Ela teria de vencer aquilo, até porque preparava algo para fazer depois de voltar do banheiro. Aproveitou e preparou mesmo naquele tempo, pegou sua bolsa e retirou um saquinho contendo um pó branco em pouca quantidade. Considerou aquela situação de vida ou morte, precisava romper o medo e irromper a porta do banheiro, mas convenceu-se de que não faria isto em plena sobriedade. Separou uma mínima parte do pó branco em cima do criado mudo, onde endireitou-o, enrolou uma nota de 100 reais e encostou no produto ao mesmo tempo em que deixava na abertura de sua narina, e cheirou. Uma fungada rápida, imperceptível, mas precisa. Minutos depois, começara a ver dobrado e seus reflexos mudaram. Resolveu que precisava de mais um pouco e levou o saquinho para o banheiro, rompendo o medo do escuro e de suas criaturas imaginárias. No cubículo fechou a porta, acendeu a luz e enfileirou mais porções pequenas da droga na borda da pia. Cheirou tudo e sentiu-se ainda mais eufórica e corajosa. Como sempre e obviamente, a cocaína fazia de Elizabeth uma nova pessoa. Saiu do banheiro com violência e voltou a encontrar seu companheiro adormecido, muito mais tranqüilo que a menina, o que a fez trincar os dentes: ele desfrutava de um sono que deveria ser compartilhado com ela.

Avançou sobre ele como se fosse matá-lo, o peso repentino de seu corpo e o impacto recebido nas costas de Cristiano o fez despertar, e com custo conseguiu olhar nos olhos de sua companheira, vendo que ela estava possessa. Batia em suas costas com força, e o nissei aproveitou a brecha para repelir seus golpes e colocá-la no chão. Não parava de se debater, gritava “FRACASSADO DE MERDA!” assustando o anfitrião, que pensou ser inútil além de impedir os seus golpes. Conseguiu inutilizar a ação dos dois braços, prendendo-os com suas mãos no chão e as pernas foram imobilizadas com suas coxas. Elizabeth revirara os olhos, perdendo a consciência, seu corpo atrofiou e grande quantidade de saliva fora expelida em sua boca. Ele não podia só assistir, precisava chamar a ambulância. E foi isto que ele fez.

“Era só o que me faltava, sua namoradinha é uma drogada de marca maior, hein?”, perguntou Emily, sentada na janela, de camisola branca e meia calça preta. “Como eu sempre achei, você é um chamariz para mulheres-problema. Já não bastava a Laura Socha, aquela psicopata que se bobeasse, poderia te matar e que está merecidamente mofando na cadeia? Agora você tem essa? Eu sugiro que você pense direito antes de colocar o carro na frente dos bois, essa menina nem deve respeitar os pais, porque se respeitasse não estaria nessa situação degradante, veja só... espumando como um caramujo e bancando a epilética, você merece coisa melhor do que isso. Desculpe minha franqueza, mas não perca seu tempo tentando ‘salvar’ quem não merece. Ou vai me dizer que ela seria uma ótima pessoa mesmo tendo dinheiro? Agora, procure sair desta enrascada de forma menos coitada que da última vez em que teve de lidar com uma garota tão perigosa tanto, como aquela Laura. Não faça isso consigo mesmo, não posso vê-lo se auto-destruir pela enésima vez”.

A ambulância chegou, trazendo uma profissional de nome Geórgia, uma das mais qualificadas da clínica Bhaga, e ela logo queria ver o estado da paciente. Cristiano acompanhou-a e ao ver Elizabeth tendo espasmos e babando abundantemente diagnosticou “overdose”, chamou os outros dois profissionais, que pegaram a menina cuidadosamente até colocarem-na em uma maca. Cris acariciou a testa da menina, subiu na ambulância e permaneceu com ela durante todo o trajeto, onde logo após, ao chegarem na clínica, teve de se afastar por um momento para que sua companhia fosse devidamente medicada. Lacrimejava e se achou culpado por não conseguir satisfazê-la na primeira manifestação livre e oficial de sua paixão por ela.

Ele não discutiria com Emily. Sua amiga imaginária tinha toda a razão para temer sua saúde física e mental, ele sempre sofrera ao tentar deixar de ser solteiro, ao tentar deixar de beijar por tanto tempo, quando a carência bateu tão forte que pensamentos tarados invadiam sua mente, quando ele arquitetava crimes sexuais e quando se aquietou quando fora contido por ela. Conhecia ele de cabo a rabo e estas idas e vindas do amor o devoravam por dentro. Mais uma vez dera-se mal com uma garota problema, embora fosse parcialmente destruído por conta de sua condição especial, considerava apto para achar a cura. Deus não podia ser tão malvado a ponto de privá-lo totalmente da consumação de seu prazer, tirando-lhe a cura em qualquer aspecto.

1 hora depois, Elizabeth estava prostrada em um leito confortável, respirando por aparelhos, mas consciente. Cristiano estava sentado próximo a ela, em uma cadeira negra, saco de sanduíches vegetarianos descansando próximo ao seu pé direito, mãos entrelaçadas explicitando seu estado sério e pensativo, calmaria, vento frio irrompendo a janela do quarto. A menina olhava para ele em um misto de carinho e lamentação. Sua mão esquerda pendia para fora do cobertor azul, e o indicador esforçava-se para apontar ao parceiro, como se ela quisesse alguma coisa. E queria. O nissei aproximou-se mais alguns centímetros, pegou a mão pequena e frágil e a beijou ardorosamente enquanto envolvido em total amor. Amor, algo que não imaginava sentir tão cedo, em um relacionamento que iniciara há pouquíssimo tempo. Seus lábios cobrindo a palma e as costas daquela mãozinha com tanta ternura, logo após estes mesmos lábios masculinos invadiram a superfície dos rostos de Elizabeth, beijando-os. Lacrimejava, e sentia-se envergonhado por isto, por depositar algo precioso em uma menina que conhecera há pouquíssimo tempo. Ela já substituíra Laura, então? Geórgia reapareceu , pedindo licença ao presenciar o ato. “Os pais... eles chegaram”, disse ela, quando Cristiano virou-se, dando de cara com um homem grisalho e de paletó marrom, além de sua mulher, uma magrela de cabelos negros e longos, rosto anguloso e seios avantajados, aparentando ter menos de 30 anos. Lembrou-se de que tinha ligado para os pais da menina (como não sabia de pronto, ligou para cada número do celular da pequena até achá-los).

- Você quem ligou para a ambulância? – indagou o pai, gordo e de mãos pesadas, estendendo para que Cristiano apertasse. – Fez muito bem, filho, agradeço imensamente por ter salvo a vida dela.
- Não foi nada, sou uma pessoa que gosta realmente de sua filha, entretanto faria isto por qualquer pessoa – respondeu o nissei, firme. – Creio que o senhor já sabe o que levou Elizabeth a dar as caras por aqui.
- Sim, eu sei. Mais uma vez, ela aprontou conosco e consigo – disse o pai, rapidamente tirando um cinto negro de sua bolsa, assustando todos à sua volta. Aproximou-se de sua filha e disse – Depois dessa, você retornará para nossa casa, se não obedecer, pode ter certeza de que não sairá viva disso tudo.
- Fique tranqüilo, senhor, só foi uma recaída, não acontecerá novamente – interrompeu Cristiano. – Sem contar que ela prometeu para mim que antes mesmo deste fim de semana irá se internar em uma clínica de reabilitação, estou de olho nela.
- Me desculpe, mas você não a conhece tanto quanto eu, claro – disse o homem. – Essa menina experimentou quase todos os tipos de droga existentes, é uma vagabunda que vive sangrando a própria empresa...
- Ela está ocupada ajudando uma pessoa a anular um processo judicial, já chamou seu advogado para dar um jeito nas coisas – disse Cristiano. – Antes que pergunte do que se trata, é sobre uma pessoa amiga nossa, não usa drogas nem nada, mas é um tanto esquentada. É necessário que ela esteja livre para dar um jeito neste processo.
- Não é problema meu, me desculpe.
- Mas, é problema meu, dela, do advogado da mesma e da menina que está para ser julgada.
- Eles estão resolvendo um problema aparentemente sério, Gideão – disse a mulher deste. – Não são crianças. Deixe ela terminar esta situação com a menina lá para depois metê-la em uma casa de reabilitação. Vamos lá, não vá fazer um papelão com sua filha neste estado, ela também já está ciente de que pode responder por seus atos.
- Mesmo assim, não quero vê-la morrer, portanto, terá de ficar alguns meses de molho para se curar. Agora, menino, retire-se por favor, pois preciso conversar com ela – disse o pai de Elizabeth. Cristiano não queria conflitar com o velho, portanto, pegou o saco de sanduíches e rumou atravessando a porta, dando uma última olhada no rosto aflitivo da guria. Combinou em ligar para ela pela manhã, antes de se preparar para o trabalho.

Voltou para casa. Acostumara-se tanto com o escuro que seu medo nunca era direcionado para este elemento. Sua mente conturbada assemelhava-se ao vácuo promovido pelo breu, o mistério, algo bom ou ruim que poderia vir dali. Ele adentrou ao escuro, encostou-se na parede e observou a si mesmo, enxugando suas lágrimas, respirando lentamente. Agachou-se, esticou suas pernas e adormeceu ali mesmo.

“Canto de Ossanha”, cantado por Elis Regina, era a trilha sonora de seu sonho. Dormira tão serenamente quanto antes, todavia, seu corpo e mente foram embebidos pelas próprias lágrimas, tendo o intuito de purificar a si mesmo cada vez que passava por turbulências pessoais. O sol trespassara a janela aberta e fustigou seu rosto, mesmo assim não despertou.


Última edição por Admin em Seg Dez 06, 2010 3:45 pm, editado 2 vez(es)
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Mensagem  Admin Ter Set 28, 2010 5:18 am

Acordou com a campainha de sua casa berrando. Abriu os olhos com facilidade, em contrapartida seu corpo estava mais cansado que nunca. Levantou-se trôpego, como se tivesse bebido todas, então pôs uma camisa qualquer e caminhou preguiçosamente em direção à porta, abrindo-a logo depois. Bom Park, sua irmã. Trajava uma calça collant negra, casaco curto e igualmente negro com capuz e por baixo uma camisa branca com estampas de riscos e grafitagens pretas, que por um momento Cristiano pensou tratar de uma camisa grande, mas era um maiô por cima do collant. Pôde sentir o cheiro gostoso de seus cabelos novamente, ela estava lá para ele, para ajudá-lo no que fosse preciso, e não sairia do Brasil até recolocá-lo nos trilhos. Bom havia maneirado na maquiagem, porém, seus cílios pareciam cada vez mais artificiais – embora não fossem – , tão grandes e expressivos que assustavam. Tudo o que seu irmão fez além de sentir-se embasbacado por sua presença impactante fora chamá-la para dentro de casa, obviamente. Carregava uma pequena bagagem de mão, quadrada e que não podia ser carregada por qualquer pessoa – Cristiano foi pegá-la e quase deixou cair em cima de seu pé, tamanho o peso sentido nas dobras de suas mãos. Bom tirou o capuz da cabeça e deixou suas longas madeixas ser agraciadas pela brisa matinal, marcavam apenas 5:59 da manhã, o nissei precisava preocupar-se também com o trabalho, mas por alguns momentos esquecera a obrigação principal de sua cabeça. Bom nunca fora de descumprir promessas, disse que aparecia e apareceu, mas então, como correria o dia de seu mano? Emily acompanhava tudo de braços cruzados, gargalhando, até que disse ao pé do ouvido de seu amigo que ele deveria manter a sanidade e contar tudo o que realmente tinha para contar, pois chegara o momento exato. “Senta”, disse ela para o dono da casa, graciosamente, apalpando a cama.

- E então, como vai o meu querido? – indagou ela, abraçando-o e beijando o entorno de sua boca. – Meses que estávamos longe um do outro, deixe eu te tocar, não seja tímido, pelo menos não agora...
- Fico muito feliz por você ter vindo, mas vou... vou direto ao ponto, preciso te dizer algumas coisas – murmurou ele, enquanto era tocado nos ombros, peitoral, bochechas e cabelos por uma curiosa Bom.
- O que fez de bom neste tempo todo? Está trabalhando, certo?
- Começarei hoje, conversei com um antigo chefe e ele me arrumou o trabalho novamente – respondeu ele. – Veja só, você está a par da situação de Laura, mas não tem como me ajudar nisto, ela será condenada hoje e aparentemente não temos o que fazer para impedi-la. Assassinou um segurança e confessou, sem contar que tem uma extensa ficha policial. Quero lhe dizer mais uma coisa: preciso que...
- Que...?
- Preciso arrumar uma cura para acabar com essa condição especial que carrego – disse ele, tenso. – Eu quero acabar com essa doença, preciso achar a cura. Se você me disser onde terei de pegar tais ingredientes, eu pego, se me dizer qual pessoa eu devo matar, eu mato, mas preciso me ver livre disso.
- Ah, Cris... Cris... – murmurou Bom, esfregando de leve a palma da mão na testa. – Acha que se eu soubesse da cura já não teria te contado? É algo que nunca me passaram na vida, e também aposto que nossos pais não sabem. Vou relembrá-lo: aparentemente as únicas pessoas que sabem da cura, ou da fórmula que leva a cura, são a porção indiana de nossa família. Terá de falar com os pais do Sidney, se quiser acabar com isto. Mas, você não acha que tentei fazer uma coisa dessas? Eu quero o seu bem mais do que qualquer pessoa desse mundo, os pais dele sempre me ocultaram alguma coisa relacionada a isto, cheguei a colocá-los na Justiça, mas perdi.
- Eu... eu lembro disso... – murmurou Cristiano, pensativo. – Mas, a família de Sidney não termina no pai e na mãe...
- Eu procurei os avós e a bisavó deles em Thiruvananthapuram – disse Bom, cruzando as pernas. – Não me disseram coisa com coisa, parecia que queriam me confundir, quase fui presa por importuná-los, não pude fazer mais nada além de voltar para Tóquio. Eu podia coagi-los, mas infringiria uma lei e seria presa por isto.
- Não valeria estar presa por esta boa causa?
- Do que você está falando, se eu fosse presa não teria as respostas de qualquer jeito! – exclamou ela. – Sempre pensei que deveria ter alguma forma de acabar com essa doença, mas não sei por onde começar. Você lembra que encaminhei uma gota de seu sangue para a Universidade de Tóquio e eles não identificaram anormalidade alguma! Fiquei de mãos atadas, todos os meses, sempre quis fazer um esforçinho para melhorar a sua vida e acabar com essa doença. Eu fiz o possível – disse, levantando-se e observando Cristiano agachado e trêmulo. Percebera que seu irmão fazia força para não descambar para o choro. Mas, o que podia fazer para aplacar o mal que vivia dentro do corpo dele? – Sidney ainda mora aqui no Rio?
- Mora, mas não nos falamos, como você já sabe – respondeu o homem. – Se os pais dele não sabem, acha que ele saberia? Mesmo que eu não vá com a cara dele não cometeria a besteira de ocultar a cura de mim, especialmente durante todo este tempo. Olhe, eu estou acumulando tristeza e constrangimento por conta disso tudo. Eu vou acabar morrendo. Isso não é vida. Precisamos procurar mais um pouco, eu posso procurar sozinho, se quiser, posso viajar a Índia inteira para pegar a bisavó...
- Desista, pelo menos de tentar falar com eles – disse Bom. – Não valerá a pena e perderá seu tempo.
- Eu tenho todo o tempo do mundo – disse Cristiano. – E nossos parentes, eles devem saber de alguma coisa.
- Não, pois foram os primeiros a quem corri atrás – disse Bom, tornando a sentar na cama. – Sabe ainda mais que temos uma ligação com os familiares de Sidney, algo tão próximo que não me surpreenderia se eles estivessem trocando informações. Já cansei de vigiar estas pessoas. Eu não estou pedindo para você se conformar, deve ter alguma cura, mas estamos procurando errado.
- Eu não posso encerrar minha vida preso nesta merda de doença. Amanhã mesmo sairei do Brasil com destino à Índia e os familiares de Sidney terão de me ouvir, não posso morrer por conta da omissão de meia-dúzia de filhos da puta – bradou Cristiano, batendo com os pés no chão freneticamente. - Vou pegar tudo o que tenho no banco e investir nisso, ninguém vai me impedir.
- Vai acabar com a porta na cara assim como aconteceu comigo, querido – avisou Bom, de braços cruzados. - Eles estão protegidos por uma maldita capa de invulnerabilidade, são ricos, fazem parte da mais alta casta hindu, então, se quer aparecer por lá mesmo eu terei de ir contigo.
- Tudo bem, eu só não posso carregar esse fardo durante toda a minha vida – disse ele, encaminhando-se à cozinha, onde retirou uma jarra de suco da geladeira, encheu dois copos e serviu à sua irmã. - Não precisamos do Sidney ou dos nossos parentes, que resolvamos isso sozinhos.
- O que você terá de bom pra fazer ho...
- Terei de ir ao julgamento da Laura – respondeu o nissei, antes de sorver parte da limonada. - Você vem comigo?

Cristiano arrumou-se apressadamente, chegou ao trabalho na rua dos Inválidos já pedindo para conversar com o chefe. Sentia falta dos confortáveis abraços de Arísia e Lídia, desejava que as duas irmãs estivessem com o pai naquele momento. Teve de comunicar ao patrão que cumpriria apenas meio-período no dia, pois teria um julgamento para participar, além do dele próprio – estava marcado no mesmo dia e mesma hora que Laura. Obviamente Bom aparecia para presenciar os gestos, naturalmente a aura de preocupação inundou todo o seu corpo e, fora as idas dele ao banheiro, não cessou com sua agarração nos dois braços de seu irmão. Preocupava-se irritantemente, algo que, em dias ruins era quase o suficiente para fazer Cristiano sair do sério, mas o que poderia realizar além dos óbvios bufos e resmungos? Por um momento pensara em dar cabo da menina, mas meio segundo depois se arrependia. Mais cedo ou mais tarde acabaria longe de tudo e de todos, como sempre quis, desde criança. Aproveitaria o momento para ver o estado de Laura e finalmente confessar que rapidamente direcionou seu carinho para a melhor amiga dela. Como a loura reagiria? Com um soco bem dado no rosto, um chute ou uma enxurrada de palavrões? Era certo de que seu amigo não reagiria, pois merecia, já que cedera aos encantos da menina Elizabeth com ridícula facilidade. Após se aprontar, fechou a casa e caminhou com Bonnie até o ponto do bonde, onde tomaram o veículo até o fórum da capital, situado próximo à Ponta do Calabouço, há poucos metros do bairro da Misericórdia e do morro do Castelo. Bom encarava a cidade com curiosidade, fitando tudo o que se mexia, maravilhada com as construções antigas, comentava que a brisa do mar carioca era mais refrescante, até a poluição sonora surtia menos efeito em seu organismo. Desejou morar ali, perto de seu querido irmão, do melhor amigo deste e da alegria que o Rio de Janeiro oferecia, precisava ser embriagada pelo prazer e sorrisos emanados pelos meninos e meninas sarados que circulavam nas praias. Não que estivesse farta do Japão, mas precisava pôr em prática uma mudança de ares, algo que almejava há tempos, mas ela olhava nos olhos de seu irmão e constatava que ele queria mantê-la longe, no intuito de não ter sua vida tranquila prejudicada.

Chegando ao fórum, deram de cara com o advogado de Elizabeth trajando um paletó negro e justo, e os cabelos penteados para trás. Embaixo de seu braço, uma pasta parda. Do lado dele, o pai e a mãe de Elizabeth, enquanto que a própria ainda mantinha-se presa à cama de hospital. Não se recuperou a tempo de acompanhar o desfecho das coisas. Tanto Gideão quanto sua esposa esperavam que Laura pegasse a menor pena possível, ela trabalhava para eles, que consideravam a mulher até mais útil e mais importante que sua filha – chegando a considerá-la uma segunda filha – , logo, estariam ali de qualquer jeito. “Me desculpe por hoje”, disse Gideão, esticando a mão direita para ser apertada pelo nissei, que assentiu e selou o bom conviver. Logo, todos foram convidados a entrar. Cristiano fora acompanhado por um policial, o advogado de Elizabeth – e por conseqüência, o dele – pediu para que se sentasse em uma das cadeiras vagas na sala, e enquanto isto chegava o juiz e o promotor. Cristiano virou o rosto e notou que Laura, com camisa branca de manga curta, macacão laranja e coturno negro chegava algemada na companhia de dois policiais. Seu cabelo fora preso por trás, o que evidenciava o tamanho já notado de sua testa. Lápis nos olhos, boca fechada. Olhou para o amigo e sorriu cautelosamente. Sentou-se há 3 metros próximo do juiz, os pais de Elizabeth sentaram-se nos fundos, enquanto o promotor sentou-se há 1 metro do chefe, o advogado na mesma medida e foram adentrando à sala os pais do segurança assassinado, que encararam Laura com evidente desprezo. Bom estava do lado de fora, tomando um milk shake e depois de sorver a última gota caminhou pela cidade, imersa em pensamentos referentes ao futuro do nissei. Chegara tarde demais para fazer qualquer coisa e caso não estivesse disposta a zanzar pelo Rio se sentiria no cúmulo da inutilidade. Mas, sentiu. Se achava completa tendo seu amor por perto, especialmente em um local lindo, mas desconhecido como aquele. A partir disto, a preocupação sobre o destino do homem aumentara consideravelmente, e ela sentou-se em um banco de praça, onde se dispôs a orar silenciosamente.

1 hora depois, tudo estava resolvido. Cristiano Mamiya fora inocentado, sob a alegação de que teria ajudado Laura a não sucumbir diante das pancadas, mas que não soube segurar a sanha assassina da menina, movida por rixa pessoal com o segurança morto.

Laura Socha fora condenada por homicídio simples – Artigo 121 – originalmente prevista para pegar 15 anos de prisão em regime fechado, devido o seu histórico violento, mas em pouco tempo o advogado conseguiu diminuir para 8 anos em regime semi-aberto. Cristiano não aliviou-se totalmente com a sentença, mas as possibilidades de passar os anos no semi-aberto amenizou o terror. Laura podia sair uma pessoa um tanto melhor trabalhando numa lavoura do que tentando matar suas colegas de cela. Quanto à reação desta, foi indiferente. Os pais do leão de chácara assassinado bradaram raivosamente para o juiz, que rapidamente pediu para os policiais acalmarem os ânimos do casal.

Tendo fim o julgamento Cristiano foi o primeiro a levantar e correu para abraçar Laura – esta ainda se mantinha algemada por trás, e por isso mesmo não pôde retribuir o gesto – , dizendo no pé de seu ouvido que sempre iria visitá-la. Declarou que a amava e ela atendeu com um ardente e fugaz beijo, interrompido pelos policiais. Cris agradeceu ao advogado – “Eu fiz tudo o que pude”, sussurrou o homem – e em poucos minutos a sala se esvaziou.
Cristiano sentiu-se mais leve. Tinha a certeza de que o desfecho de tudo não seria feito conforme sua vontade, mas aliviou-se por ser beneficiado pela eficiência do advogado indicado por Eliabeth. Laura também fora beneficiada, aquela era a oportunidade para dar mais valor à sua vida e a vida de quem amava, importando-se – ou ao menos tentando se importar – com seus sentimentos, sentimentos genuínos, embora confusos, mas que não deixavam de pulsar com transparência. Cristiano se via confuso, é claro, pois só o fato de presenciar a esperança no rosto corado de Laura a paixão sentida por ela ressuscitara, novamente dividindo-o entre o coração forte da loura e o coração centrado de Elizabeth, que adormecia com remédios no momento. Este dilema adolescente o ridicularizava, poderia ser qualificado como uma espécie de câncer que poderia prejudicá-lo, tendo o poder de esganá-lo nos momentos mais temerosos e decisivos. Não queria enganar qualquer uma das duas mulheres. Pensaria sobre isto o tempo que quisesse, visto que já estava livre para seguir sua vida. Lembrou que Bom estava à sua cola, então, possivelmente restringiria sua liberdade, suas idas e vindas, pouco se sentiria sozinho – de um jeito que ele sempre apreciava – , os futuros e possíveis encontros íntimos poderiam ser solapados pela interferência indesejada da garota, logo, pensou em levá-la de volta para Tóquio, mas não seria tão fácil, visto que a pequena não completava 12 horas de permanência no Rio. Forçar a saída da guria configurava em possíveis mágoas e ele não estava seguro o suficiente para tirá-la de sua vida parcial ou permanentemente – até porque não era isso que queria. Gideão apertou sua mão mais uma vez, elogiando Cristiano por ter tomado o papel de defensor, tagarelando tão rápido que seu interlocutor nem se importara em vasculhar o que estava sendo dito. Também, só queria voltar para casa. Encontrou Bom, esta o abraçou de pronto e perguntou sobre o resumo da ópera. Gideão queria levar todos para comer, mas Cristiano recusou, alegando que tiraria o dia para refletir o ocorrido. Evidentemente, Bom partiu com ele. O nissei despediu-se, atravessando a via e sumindo com sua irmã na esquina.

Voltou à casa implorando pela solidão – evidenciando a relação de amor e ódio sentido por ele – e queria a todo o custo ficar sozinho em seu quarto. Pensou em visitar Elizabeth ainda naquela tarde, mas teria de dar explicações à Bom, tal qual um filho se explica à mãe, algo que o irritava profundamente só de pensar. E ela estava lá, enfurnada na cozinha preparando a janta – sem pedir permissão de mexer nas panelas – cantarolando baixinho e balançando a bunda. “Tudo bem, contanto que ela fique longe de meu quarto”, pensou ele, cobrindo-se. Direcionou seus pensamentos à Laura, os poucos momentos íntimos vividos pelos dois, se devia deixá-la para dedicar-se à Elizabeth e vice-versa. Ao virar o rosto para o travesseiro, querendo dormir, Bom bateu em sua porta.

- Estou preparando uma coisa gostosa pra você, parece que não anda comendo muito bem – disse ela, escorada na porta. – Não me ignore, Cris.
- Depois de tudo o que aconteceu eu só quero dormir – disse ele. – Tô morrendo de sono e não quero ser perturbado.
- Eu estou te perturbando?
- Eu só quero dormir – respondeu, enroscando-se no pesado cobertor, pegou o copo e encheu com um tanto de suco, tomou rapidamente e adentrou à roupa de cama como um caracol. Bom o fitou tristemente por alguns momentos e depois o deixou sozinho.

25 minutos depois, a comida estava pronta. Bom preparou o seu prato e o de Cristiano, porém, temeu que fosse enfrentar um acesso de resmungos vindos do nissei, tinha ciência de que ele não a queria da mesma forma que antes, pois tinha avidez em resolver seus problemas pessoas e novamente mergulhar na solidão, embora por outro lado detestasse permanecer sozinho. Como todos sabiam, Bom adentrara ao Rio de Janeiro à turismo, portanto, teria de voltar à sua casa dentro de poucos dias. Não apenas desejava ajudá-lo de todas as formas possíveis e imagináveis, mas também almejava entendê-lo, sob todos os aspectos. O amava intensamente e queria acrescentar ao leque do seu amor a ajuda necessária para dissolver pelo menos a maior parte de seus conflitos – sugerindo tal abertura que seu irmão nunca cederia, mesmo se implorasse. Ele daria corda até certo ponto, algo já demonstrado a partir do momento em que o anfitrião sentiu-se incomodado com a presença dela. Imaginou retirar-se do recinto após a janta, alugar um quarto de hotel e permanecer ali até quando decidir ir embora, mas sabia que iria se arrepender. Convenceu-se de que chegara em péssima hora, mesmo sendo chamada. “Mas, e a doença? É preciso fazer alguma coisa”, pensou Bom. “Ele viajará para a Índia, no fim das contas acabará indo sozinho, sabendo que não conseguirá nada lá. Toda a procura relacionada à cura da doença chegou ao fim, mas... o que posso fazer? O que eu posso fazer?”

Marcavam 19:00 quando Cristiano acordou, faminto e irrompeu a porta de seu quarto, antes de verificar o clima mostrado em sua janela: chovia fino. Mesmo assim queria comer e visitar Elizabeth. Foi à sala de estar e presenciou Bom sentada na pequena poltrona, adormecida, boca entreaberta e corpo torto e levemente esticado, além da cabeça imprensada para os peitos, dando uma sensação desconfortável a quem vê. Tratou de ajeitá-la, fazendo melhor: pegando-a no colo e deixando em sua cama – como morava sozinho e tão cedo não imaginava que mulheres freqüentassem sua casa - deixou-a em sua cama de solteiro, a que sempre dormia, a única disponível. Acariciou sua testa e beijou sua face, antes de cobri-la com seu edredon. Fazia bastante frio, com o tempo pedindo para nevar, mas mesmo assim o desejo em conversar com Elizabeth não fora afugentado. Escreveu um bilhete, arrumou-se e fechou a porta, esquecendo-se de tomar seus remédios. Tomou um bonde e enquanto bem reconfortado ali, deu uma mexida no bolso e puxou para ver quanto tinha, apenas R$ 50. Não dava para viver deste jeito, como uma pessoa decente, uma pessoa comum. Movido pelo medo da dependência financeira – e sua proximidade cada vez mais tomava lugar na vida – combinou que retornaria a pé para casa. O que tinha no banco gastaria na viagem.

Chegou na clínica Bhaga. Algumas funcionárias entoavam o nome de Sidney Silvestre, o que chamou sua atenção prontamente. Não queria perder tempo, precisava subir o andar referente ao leito de Elizabeth, que o fez rápido, subindo as escadas como um gato, até adentrar ao corredor, abrindo a porta.

Ninguém no quarto. Uma pequena sensação de desespero tomou seu coração, e ele olhou para os lados no intuito de procurá-la, nem que fosse dentro de uma gaveta, mas ela não teria fugido, pois queria vê-la de qualquer jeito, anunciar que estava prestes a partir para a Índia, e como uma criança tomada por sentimentalismo e impetuosidade a chamaria para acompanhá-lo. Sim, achava-se um imbecil por arquitetar tal plano, mas precisava sedimentar os nobres sentimentos que sentia pela guria o quanto antes, para esquecer-se de Laura – sendo que já trataria de combinar uma visita na colônia penal, caindo na mais pura contradição – , isso se não houvesse uma reviravolta na qual Elizabeth desistisse dele ou revelasse estar usando o maluco. Temia a possibilidade, queria vê-la e tocá-la, se saiu da cama era porque já estava mais ou menos numa boa. Ouviu seu nome ecoar do lado de fora – seu corpo esgueirava-se na parede próxima à fechadura, sendo visto em sua metade por fora – e quando virou o rosto para ver a dona daquela bela voz, deparou-se com Elizabeth caminhando com dificuldade, trajando o uniforme da clínica e sendo ajudada em seus passos por uma enfermeira loura de cabelos curtos e cacheados. Seu parceiro sentiu o estômago revirar de nervosismo ao vê-la. Seus cabelos estavam desgrenhados, mas ela não se importava, logo, soltou-se da mão da enfermeira e andou rápido para abraçá-lo. E ele sentiu-se na maior das sensações, com a respiração gostosa da guria tomando suas narinas e ouvidos, além da brisa proporcionada correndo nas entradas de seus poros. “Você está bem?”, perguntou ele, tocando a face da menina. “Você está bem?”.

- Ela está bem, mas amanhã será internada em uma casa de recuperação – disse da enfermeira, sorrindo. Cristiano a fitou com olhar de censura, mas Elizabeth desceu de seu colo e sorriu para ele, assentindo que aceitaria seu destino numa boa. Estava errada durante a maior parte do tempo, não queria causar mais problemas para os outros e para si mesma, morrer cedo não estava em seus planos, apesar da vontade quase irredutível em transitar entre os dois mundos. Tinha convicção de seu vício e de seus efeitos destruidores, portanto, optou em aceitar sossegar o facho. Não podia fazer mais nada para correr contra a maré, sem contar que o cansaço relacionado à rebeldia apossou-se de seu corpo e mente. Teu destino a partir dali consistiria em seguir o tratamento na casa de recuperação enquanto teria sua vida acompanhada pelo nissei, que mostrava-se bastante interessado nela. Um desejo genuíno, que se dependesse dele descambaria para o namoro puro e simples.
- Tudo bem, eu preciso conversar com ela em particular, pode ser? – perguntou ele, observando a enfermeira inclinar-se preguiçosamente na parede. Com o pedido educado de Cristiano, descolou-se da parede e pediu licença para que se retirasse. O uniforme que Elizabeth usava consistia em uma túnica cinza com babadinhos, além de uma justa calça preta. Por motivos pessoais transitava descalça no local, sua testa estava mais brilhosa que nunca e seu pescoço emanava sensualidade. O nissei a observou antes de começar a falar, ela devolveu os olhares em um sorriso contido e meio constrangedor, sentada na cama e respirando com lentidão. – Vou para a Índia amanhã.
- Índia? Fazer o quê? – perguntou ela.
- Vou procurar uma parenta que sabe da cura de minha doença, como ela nunca viria para cá, estou indo para lá – respondeu ele, sentando-se ao lado dela.
- E o trabalho?
- Terei que sair de lá e procurar outro, mas eu sempre passei por isso, estou bem acostumado – respondeu Cristiano, fitando o chão. Foi abraçado por ela e o professor pôde sentir novamente seu cheiro natural. – Viajarei por mim e por nós, estou sofrendo com isto há quase 40 anos, e os familiares meus e do Sidney não quiseram fazer nada sobre isto é o cúmulo da maldade. Não vou sair de lá com as mãos abanando, nem que eu tenha de machucar as pessoas sairei com minhas respostas dali. Vai me dizer que eu deveria ir com calma e que não devia me importar tanto, mas me importo muito, desde a primeira vez em que passei constrangimento por essa doença de merda. Isso tudo vai acabar.
- Mas, a gente pode “fazer” de outro jeito – disse Elizabeth, sorrindo enquanto tentava encostar sua boca na dele. – Está ficando excitado, né? Melhor não fazermos nada, pois eu não quero uma morte na minha consciência, hueheh. Você não gosta de conselhos clichês, não?
- Odeio.
- Então, espero que você se dê muito mal e não consiga o que quer.
- Não posso acreditar que você acha que tudo é “8 ou 80”, Elizabeth – disse ele, levantando-se da cama. - Muito bem, eu não costumo ser tão otimista assim, mas eu vou retornar numa boa, na semana que vem. Com a cura. Sidney também sofre a mesma coisa que eu, mas se ele não está nem aí para a cura é porque se diverte com a doença. Parto amanhã de manhã.
- Mas, com qual dinheiro? – indagou ela, levantando-se para se aproximar dele.
- Tenho uma quantia entocada no banco – respondeu. – E não posso acreditar também que não tenha falado de Laura, devia ser a primeira coisa a comentar comigo, também não se importou com a minha absolvição.
- Eu ia falar sobre isso quando você justamente disse que iria para a Índia! – exclamou ela, sentindo-se injustiçada. – Não iria deixar de dar importância ao que aconteceu contigo e com minha amiga, oras.
- Tudo bem, tudo bem – disse ele, circundando o quarto. – Bom, eu preciso ir embora, estou cansado.
- Não aja assim comigo, está me ofendendo – protestou a menina, tentando prender os braços de seu amado com suas mãos pequenas e pálidas. – Não faz isso comigo, cara!
- Está bem, mas eu realmente preciso voltar para a casa e pensar num bom motivo para apresentar ao chefe amanhã... é, não sairei do trabalho, mal comecei... cogitarei a possibilidade dele tirar uma parte do meu salário, sem problemas.
- Espera, eu vou contigo, amanhã de manhã é que terei de ir à casa de recuperação, então, não precisa se preocupar com minha permanência em sua casa – disse ela, agarrando-se a ele, que fingia desinteresse, mas era brutalmente entorpecido pelo cheiro gostoso de sua guria.
- Não irá à lugar nenhum hoje além da casa de sua família – interrompeu Gideão, aparecendo repentinamente, sozinho. – Boa-noite, Cristiano Mamiya – cumprimentou-o, e seu interlocutor atendeu com um aceno singelo. – Elizabeth, você ainda não está bem, portanto, dormirá na sua casa antes de eu te encaminhar para o centro de reabilitação.

Não havia mais nada para fazer. Cristiano anunciou a Elizabeth que retornaria em 1 semana, mas que não aguardasse tanto a ponto de deixar seus afazeres – como se ela fosse perdidamente apaixonada por ele. Pior que era - , então, despediu-se. Como bem sabia, não deixou a clínica sem os votos de sua pequena, além do forte aperto de mão dado pelo pai desta, verdadeiramente feliz. Percebeu que a testudinha mal podia caminhar por conta própria, ainda não recobrara todas as forças de seu organismo e balbuciava ao elaborar algumas frases. Pensou em dizer: “Me terá por inteiro quando eu retornar com a cura”, mas podia se arrepender. Cada vez mais refletia na iminência de sua viagem e nas aventuras que iria protagonizar, sob solo indiano, buscando o suposto antídoto, colecionando os ensinamentos de mais uma cultura, além das boas e más memórias que a experiência poderia obter. Cada vez mais focava-se à tensão proporcionada pela futura viagem. Ao atravessar a porta, a mão pesada de Gideão quase cravou seu ombro direito. Virando-se temerosamente, Cristiano ouviu a pergunta: “Como está seu trabalho?”

- Por conta da viagem, terei de adiar meu trabalho para a semana que vem.
- Adiar trabalho? Semana que vem? – perguntou o homem, como em escárnio. – Este chefe deve ser bem liberal com seus empregados, pois se eu estivesse no lugar dele, estaria despedido prontamente.
- Eu entendo – o nissei limitou-se a responder. Mal verificava a expressão desaprovadora do pai de Elizabeth, que mirava a situação sem ter o que fazer, provando que ainda estava nas mãos de sua família.

Cristiano retornou para a casa debaixo de neve, o serviço de bondes foi interrompido em poucos minutos, o suficiente para irritá-lo e fazê-lo retirar a bunda do banco do ponto. Decidiu percorrer o trajeto a pé, suas pernas pediam por isto, e enquanto caminhava sendo levemente esfaqueado pelo vendo trio, refletiu mais uma vez sobre sua viagem. Alegrava-se muito mais por dentro que por fora.

Sentou-se no chão de sua calça, as janelas fechadas. Bom estava acordada, assistindo televisão, tão compenetrada em um filme que não notara a entrada de seu irmão. Este, arrependeu-se de ter despedido-se de forma tão insípida de Elizabeth, como fosse apenas uma conhecida. O dinheiro retirado no saque estava em suas mãos, logo, bastava reservar o horário da viagem e preparar suas coisas. Da porta, ele podia acompanhar os batimentos cardíacos de sua irmã, a calmaria instaurada em seu corpo e mente, e sentiu inveja dela por isto. Levantou-se e quebrou a tranquilidade a abraçando repentinamente. Bom, assustou-se e, tratando-se de Cris, mordiscou seu lábio superior. “E então, e então, o que você resolveu?”, indagou. “Vai mesmo viajar?”

- É claro – disse ele, aborrecido por responder algo tão óbvio. Antes que o nissei perguntasse, Bom disse que tinha comida na panela e que ele podia se servir o quanto quisesse. Já ela, cheia a ponto de não mover-se direito da poltrona, queria levantar para enchê-lo de carinho, mas o professor recusou. Cristiano encheu o prato e entrou no quarto. Não fechou a porta. Bom o fitava aparentando tristeza, desapontamento, mas não podia mais interferir no comportamento de seu irmão.

2 horas depois, desligou seu computador após horas inúteis de conversa com as gurias do MSN. Jurou não mais perder tempo com estas “piranhas desgraçadas” e caiu no sono.

“Eu já estava de saco cheio das coisas. Meus devaneios amorosos já me perturbavam desde a infância e eu poderia dizer que qualquer pessoa entenderia se minhas pernas bambeassem ao ser agraciado com duas formosas garotas. Eu amava as duas, isto, usando o verbo 'amar' da forma mais superficial possível, de um jeito que normalmente não usaria. Tudo isto era a prova de meu deslumbramento. Eu queria Laura comigo, entretanto, sabia que seria difícil sustentar um relacionamento com ela presa em uma colônia agrícola da puta que pariu enquanto eu teria de resolver minha questão com Elizabeth, outra garota que eu também fazia questão em oferecer meu amor. Como adolescente, fui inundado por um dilema, o que fazer exatamente na minha relação com as duas mulheres? Eu já tinha refletido sobre isto antes, talvez pudesse largar Laura e talvez também ela poderia entender numa boa, sem efetuar chiliques ou manifestações de violência física e verbal, mas se o fizesse, como pensei antes, não reagiria. Tanto ela quanto Elizabeth passavam por situações difíceis em vida, entretanto, ambas me alimentavam em igual porcentagem. Significavam 50% da minha ânsia em dar as caras na Índia para procurar a minha cura, isso é, se tivesse alguma. Teria de fazer a limpa nos parentes de Sidney, também meus parentes, pessoas que raramente conversei em toda a minha vida, pois vivi enfurnado em minha vida japonesa e quando retornei para o Brasil abracei a solidão de forma tão acachapante no Rio de Janeiro quanto a realizada em Tóquio. Eu precisava ter total liberdade para transar, para ter orgasmos sem depois passar por espasmos musculares, dores cerebrais e corporais, tal qual uma dor de cabeça e uma dor de barriga unidas alavancadas em 150% além da normal sensação desagradável. Desde criança me sentia preso por amarras invisíveis, cheguei a pensar que a doença era relacionada ao meu psicológico, mas não era. As diferenças fisiológicas – começando pela cor do sangue e terminando pelas alterações físicas evidentes após as dores – mostravam que eu estava certo quanto a não ser uma doença psicossomática, existia e era mais do que necessário acabar com este mal. Pelo menos tentar. Não me acho coitadinho, certas decepções surgiram por minhas próprias mãos, mas não era possível terminar meus dias sob o jugo do medo. Se não corresse atrás da cura me consideraria um cadáver ambulante. Considero a prática sexual 'overrated' desde minha adolescência, todavia, quando há oportunidades em lidar com mulheres e seus encantos prova-se que não sou de ferro. Sexo faria parte da minha vida”.

Cristiano tomou um bonde até o Aeroporto Internacional do Galeão, na localidade da Ilha do Governador, local um tanto longe do Centro do Rio, situado em uma parte parcialmente inóspita da cidade. Tinha sono, mas decidiu lutar contra isto para relaxar à vontade quando estivesse dentro do avião. Adentrando ao saguão, notou que poucas pessoas embarcavam e desembarcavam. Lembrou que sua irmã queria porque queria acompanha-lo, mas este rechaçou seu objetivo, alegando que não queria sofrer com sua choradeira – dizendo de forma bem direta no intuito de que Bom se sentisse ofendida mesmo – e ficou assim, com sua presença espiritualmente solitária naquele lugar amplo, trajando sapato marrom, calça jeans preta e casaco de lã bege por cima de uma camisa pólo branca. Não precisava levar muita coisa além de sua mochila forrada com sanduíches vegetarianos, além de duas mudas de roupa. Sempre detestou carregar malas e outras coisas que ocupassem suas mãos durante um grande espaço de tempo. Teve de ir ao balcão da empresa na qual usaria seus serviços para fazer o “check-in”. Pouca fila, mas pessoas enchendo o saco discursando sobre como pegaram aquela piriguete da festinha passada e sobre quão bom seria votar em um candidato que assumira não fazer nada pelo povo caso fosse eleito. Tentou acalmar-se, contou alguns carneirinhos e quando chegou sua vez de ser atendido, soltou um suspiro, aliviado. Olhou para o tempo, certamente os aviões seriam auxiliados por aparelhos, pois era nublado e terminara de nevar á umas 6 horas. Como não tinha bagagem não precisou despachá-la, mas sua mochila fora verificada. Os poucos situados na fila insistiam em observar seu semblante, fazendo Cristiano meter cuidadosamente a mão na face e procurar o que tinha de errado. Nada. A mesma sensação incômoda quando se vai a bancos. Pessoas são uma merda mesmo. Cartão de embarque. Pôs seu olho clínico para trabalhar e constatou: É o vôo do Boeing 767-300ER, linha Rio de Janeiro – Johannesburg da South African Airways. De lá, tomaria um jumbo da mesma empresa para Mumbai, efetuando uma trajetória menos custosa e demorada que pela Europa ou pelo Pacífico.


Acomodou-se em sua poltrona próxima à janela, rezando para que ninguém sentasse perto dele, mas infelizmente, em poucos segundos, uma loura de meia idade ocupou a poltrona próxima à sua, acomodando-se como se quisesse chamar a atenção de sua companheira, o que foi percebido por ele, cerrando os punhos de raiva. Não queria fazer um papelão, portanto, virou o rosto para a janela, forçado a apreciar a paisagem mais cedo. Sentindo-se culpada pelo incômodo do companheiro de poltrona, tocou o ombro do nissei perguntando se ele estava se sentindo bem, mas Cristiano não respondeu. Não queria se aborrecer em uma empreitada tão importante como aquela. A loura insistiu com suas cutucadas no ombro alheio, até ele virar-se bruscamente e dizer que não queria conversar, fazendo uso de uma careta amedrontadora. Foi o suficiente para afugentar a mulher, que virou o rosto enrugado para o lado, engolindo seco. Provavelmente pensava no erro que cometera, e ainda mais desapontada por ter de lidar com quase 2 dias de viagem sem trocar uma conversa, por mais superficial que fosse. Cristiano encolheu-se como um gato e quando o avião se mexeu – em sua preparação para decolar – sua barriga e peito foram tomados por um misto de medo e excitação. Não se impressionaria caso morresse ou sofresse qualquer acidente que fosse durante o trajeto. Sempre fora temeroso em relação a aviões, enquanto Sidney encarava a situação com extremo humor e naturalidade. Quando criança, na primeira vez em que pôs os pés em um avião, dera um ataque de pânico tão impagável que Sidney, na época junto com ele, literalmente mijou na calça de tanto rir. Recordou o momento aos risinhos, imperceptíveis para qualquer pessoa.

Em meia hora caiu no sono, confortável o suficiente para perder a consciência.

Bom havia passado tudo o que sabia sobre seus parentes distantes para ele. Endereços, telefones, além de algumas fotos, como já sabia que seria cobrada, pegando quase tudo o que podia de sua casa em Tóquio para passar para ele. Mesmo assim, ao passar tudo para o irmão não se considerou útil o suficiente. Prosseguiram com o mal estar até a despedida, executada de forma protocolar, com Cristiano não dando abertura para sentimentos mais calorosos. Bom prometera permanecer na casa dele enquanto o nissei não retornasse, e no fim da jornada voltaria para o Japão.

Na primeira metade da viagem, chegaram à África do Sul, aterrissando no Aeroporto Internacional OR Tambo, em Johannesburg. Fazia bastante frio, seus dedos congelavam como nunca, nem mesmo ao passar por neve no Rio e em Tóquio a sensação de estar sendo cortado por lâminas afiadas tocou de forma tão incisiva o seu corpo. Tudo o que queria no momento era permanecer deitado em sua poltrona, desfrutando da tranquilidade oferecida na viagem – outrora encarada com desconfiança. Moveu seus pés com dificuldade, teve de agir como os demais passageiros, pegar suas coisas e aguardar no terminal indicado, onde tomaria o próximo avião com destino a Mumbai. Apesar de não pôr os pés nas ruas de Johannesburg sentira em sua espinha a diferença brusca de ares, além do já citado frio. As pessoas, suas características podiam ser varridas em uma olhada clínica, casando com o que fora mostrado na televisão em 2010, na Copa do Mundo realizada naquele país. Más lembranças. “Povo pior que o brasileiro, não entendo como pessoas que vivem na merda extrema conseguem manter a alegria, do que são feitos os sul-africanos além da mesma porcaria que substancia os brasileiros?”, perguntou a si mesmo na época. As cornetas irritantes, o governo populista, todo o passado racista nojento na qual o país custou para se livrar... irritou-se tanto com as dores do país alheio ao mesmo tempo em que irritou-se tanto com o jeito alienado da maioria de seus habitantes. Queria salvá-los, salvar a si mesmo, salvar a consciência de um país no qual não nutria parentesco e experiência alguma.

Queria sair do aeroporto e vasculhar Johannesburg, a curiosidade pulsava em seu coração, mas temia perder o avião. “Quem sabe outro dia”, murmurou, lamentoso. Sul-africanos lembravam namibianos, o que fazia sua mente arquitetar a fisionomia e a personalidade da estudante que tomara seu coração por certo tempo. Ela ainda estava no Japão. 1 hora depois entrou em outro Boeing, desta vez sem a companhia de alguém. Respirou com alegria e tirou da mochila “O Apanhador no Campo de Centeio”, antes de dormir em 2 horas de leitura.

Acordou com um chamado no pé do ouvido. “Já chegamos à melhor cidade do mundo”, disse a aeromoça, uma morena de cabelos longos e lisos até as nádegas e olhos amendoados. Reagiu ao chamado abrindo lentamente seus olhos oblíquos, e logo após afastando uma pequena crosta de remelas. Respirou fundo e notou que havia um obeso obstruindo sua passagem, havia dormido próximo a ele, mas Cristiano estava tão confortável em sua dormida que não se sentira incomodado em minuto algum. Ao perceber a mulher afastar-se dele para acordar outros passageiros gritou para ela ajudá-lo a despertar o monstro, e por fim fizeram um esforço hercúleo para fazê-lo abrir os olhos. Um gordão de olhos azuis e suor praticamente incessante acordou com um grunhido, notou que já haviam chegado em Mumbai, e após verificar todo o ambiente em um ângulo de 360 graus resolveu levantar – Cristiano não queria forçar a barra, visto que não tinha o menor saco para arrumar briga. Livrando-se dele após o desembarque, pôs a mochila nas costas e foi recepcionado por uma lufada abafada de vento vindo do norte. Alongou-se e tentou se orientar. Estava no Aeroporto Internacional Chhatrapati Shivaji – anteriormente chamado de Aeroporto Internacional Sahar, situado na região metropolitana de Mumbai, no estado indiano de Maharashtra. Fazia um calor próximo aos 35 graus e ao contrário do Aeroporto do Galeão muita gente transitava nos terminais, vindas das mais diversas partes do mundo. Obviamente Cristiano figurava entre elas, embora tenha sido incumbido de resolver um motivo um tanto estapafúrdio. Não obstante seu descanso salvador nos dois últimos dias dentro dos aviões seu corpo ainda não estava satisfeito, o conforto de uma cama subjugava o conforto de uma poltrona reclinável, coisas totalmente distintas. Suas costas doíam, o que acrescentava mais um motivo para sossegar e relaxar seus músculos. No saguão, recostou-se em uma cabine telefônica e deu uma olhada na lista, procurando um hotel das redondezas. “Este Le Grande é mais barato que os demais, ficarei nele”, sussurrou para si mesmo, já se divertindo com a aventura. Ao fechar a lista telefônica, fora tocado no ombro. Um toque leve e feminino.

- Namaste! – cumprimentou uma jovem indiana trajando um sári rosa e amarelo, cabelos negríssimos, longos e repartidos, explicitando sua gloriosa beleza. Emanava também timidez em seus atos. – Não acreditava que o senhor realmente aparec... desculpe, meu português é péssimo, me desculpe mesmo.
- Sem problemas, eu sei falar marata – disse Cristiano, sorrindo e já iniciando uma conversação nesta língua. – Em contrapartida tenho dificuldades em falar malaiala, que é a língua mãe do meu parente... Sidney. E de vocês também, não? Não são originalmente de Thiruvananthapuram?
- Oh, mas como o senhor sabe que sou parenta de Rajendra, a última vez que vi o senhor foi quando eu era adolescente.
- Eu lembro muito bem desse rosto redondo e bonito que tem – disse Cristiano, fazendo a menina corar. – Agora, foi de muita consideração Bom chamar vocês para me recepcionar. Onde está o pai e a mãe de Rajendra?
- Ah, ele está dando duro na empresa no bairro Bandra e mamadi permanece em casa cuidando dos negócios de nossa tapeçaria – respondeu a pequena, com mãos trêmulas. Cristiano queria tocá-la, mas não podia fazê-lo em público. Lembrara da menina, mas esquecera seu nome e quando foi perguntar ela prontamente respondeu: - Bijitha. O senhor deve se lembrar da minha irmã Soumya, né? Mais velha que eu, está sabendo de sua visita e quer muito vê-lo.
- Que bom – disse ele, impressionado em não ter de “amargar” a solidão em um hotel. O dinheiro já estava acabando, ele precisava trocar por rúpias, comentou esta questão com Bijitha, com esta afirmando que não precisava se preocupar com o câmbio naquele dia, pois Bom contara tudo após seu irmão partir, dizendo que passaria por problemas caso explorasse o país sem a ajuda de alguém. Nada melhor que sua própria parente (distantíssima, mas parente) para acompanhá-lo.

Limitou-se a ouvir o que a menina tinha a dizer. Ao sair do aeroporto tomaram um demorado táxi até a cidade de Thane (1.673.465 habitantes), 30 quilômetros ao norte do subúrbio de Mumbai. A curiosidade em conhecer o centrão de Mumbai assomara o coração de Cristiano, mas ele não tinha intenções em dar trabalho para sua guia, sem contar que conhecer as entranhas de uma megalópole configurava em contradição, sua vida e mente não seguiam esta cartilha, sempre amou a calmaria e o interior dos estados. Outubro a março era o período de melhor visitação à Thane. Bijitha o observava de cima embaixo, lendo o suor que inundava os poros da cabeça do visitante, o cabelo grande com mechas cobrindo parcialmente sua testa, além do respirar movendo seu peitoral, desferindo imaginações eróticas na cabecinha da guria. Era fato de que naquele momento sentiu desejo de tocar seu peito, nem que fosse para acariciar os pelos e sentir a textura da pele. Cristiano alargara sua posição dentro do táxi, com as costas abaixadas, a respiração aprofundando-se... sua anfitriã perguntou se ele estava sentindo-se mal, e recebeu como resposta um “calor demais, preciso tomar uma ducha”, murmurado por ele. “Calma, já estamos chegando”, aliviou ela.

- Você sabe exatamente porque estou aqui, não sabe? – indagou ele, sem olhar para os grandes olhos de Bijitha.
- Sim. Mamadi irá guiá-lo da melhor forma possível – respondeu ela.

Chegando em Thane, Cristiano não se aguentava de tanto suor, Bijitha almejava tocá-lo (especialmente para sanar sua curiosidade), mas não podia. O nissei entendera a situação da menina e se reergueu sozinho. Quando a menina disse ao motorista para parar um ponto próximo ao lago Upwan. Ao descer o professor cambaleou enroscando em seus próprios pés, batendo as costas e a nuca em um poste, sendo segurado pela menina. Já o motorista não parou para pedir socorro e Bijitha jurou que iria denunciá-lo por negligência. Cristiano levantou-se com dificuldade, esgueirou-se no mesmo poste e respirou fundo. “Aqui está a nossa casa”, murmurou ela, apontando para a suntuosa residência cor de ouro ao seu lado. Alguns passantes fitavam a dupla – ela percebeu e envergonhou-se por estar participando de uma situação como aquela – e Bijitha decidiu apertar o botão do interfone. Segundos depois a porta gradeada fora aberta e o visitante percebeu que estavam sendo monitorados por diversas câmeras. Adentrando totalmente ao local Cristiano notou que precisavam atravessar um pequeno jardim até a entrada da casa, onde provavelmente seriam recepcionados já na porta. Sentiu um arrepio na espinha, conhecer parentes que raramente vira na vida, a mudança de ares começara a ser feita a partir do momento em que quase sucumbira ao calor acachapante de Mumbai, forte o bastante para tonteá-lo, e agora preparava-se para se embasbacar com o estilo de vida daquele clã.

- Bijitha! Cristiano! – bradou um homem vestido de branco, bigode vistoso e cabelos negros. – Finalmente você veio, vamos relembrar seus momentos de infância, como anda passando no Brasil?
- Desculpe, não lembro do senhor... – o nissei murmurava quando sua guia comentara por cima que o homem gordo à sua frente tratava-se de um de seus tios, Gopal. Este o abraçou fortemente, quando na verdade a simpatia não era recíproca.
- É normal que não lembrem de mim, hueheh. Sou Gopal, irmão de Jesminder, mãe de Rajendra, que você conhece como Sidney – disse ele. – Aliás, falando nele, tem muitas notícias sobre o sujeito? Há um bom tempo não sabemos nada sobre ele, não nos manda cartas, emails e muito menos telefonemas... Bom disse que ele se dedica muito ao seu trabalho social e médico no Rio de Janeiro, vive mimando aquela filha adotiva esquisita dele, além de outras coisas. Eu podia passar um tempão aqui dizendo sobre o quão ele é individualista, até mais que você, mas não quero posar de fofoqueiro. Venha, vamos entrar, mas primeiro tire seus sapatos, por favor – ao dizer isto, a paciência de Cristiano transbordou e ele preferiu estar mais próximo de Bijitha, que considerava ser uma companhia muito mais agradável. Estava já convencido de que gordos falantes sempre eram falhos no sentido de agradar uma pessoa, qualquer pessoa. Os três adentraram a uma enorme sala de estar vermelha, coberta por defumadores, panos, sofás ostensivamente estampados com gravuras manuais, um canapé de vidro com frutas naturais suculentas acima e música tranquilizante rolando. Há quanto tempo não caíra de boca em um ambiente aprazível como aquele? Entretanto, detestava incensos como diabo detestava a cruz, logo, já podia limitar os dias em que passaria as futuras férias em Mumbai. Bijitha pediu para que ele se sentasse e logo uma empregada surgiu com uma jarra de chá, suco e água, pedindo com delicadeza para que escolhesse sorver um deles. Optou pela água, bastante gelada. A cada gole parecia ter trocado sua garganta outrora quente por gargantas frescas, incutindo um prazer congelante que atravessara todo o seu corpo. Tão logo sentiu-se bem que ouvira passos delicados cortando a porta do segundo andar e descendo a escada. Cristiano ergueu os olhos e maravilhou-se com o semblante sóbrio e bronzeado de Jesminder Banerjee, mãe de Sidney Silvestre.

- Imaginei que realmente viria para cá – disse ela, após vencer todos os degraus da escada. – Você sempre foi uma pessoa mais determinada que o seu primo. E então, já sei o que veio procurar comigo e com os meus pais, mas preciso ouvir de sua boca o que deseja.
- Eu... eu não estou mais agüentando ser vítima desta doença – disse Cristiano, inicialmente tímido, mas encarando coragem para dialogar com a bela mulher, que sentou-se próximo a ele. A empregada esgueirou-se em um pilar para acompanhar a conversa, mas rapidamente foi repelida pela mãe de Sidney, que com um aceno pediu para que se retirasse do recinto. – Eu vou acabar morrendo, sabe que não estou fazendo drama, , não quero terminar meus dias morrendo de forma tão vergonhosa. Eu tenho 40 anos de idade, não posso me abdicar das... relações sexuais, não pedi para que me acontecesse isso, tudo o que eu quero é achar uma cura ou pelo menos uma medida paliativa, porque não mereço sofrer deste jeito. Por favor, quero que me ajude. Lembro-me de que minha irmã mais nova falou que já se encontrou com a senhora e sua família, mas vocês praticamente ignoraram seus pedidos, ela saiu do Japão para a Índia porque se preocupa muito comigo e acha que o fardo que levo não deve ser carregado até o fim da minha vida. Eu não posso morrer sem experimentar totalmente o que desejo. Eu quero a cura, preciso da cura. Por favor.
- Ela também deve ter dito a você que não tenho posse da cura – disse a mulher, cruzando as pernas sob o sári – Mas, me diga: tem realmente necessidade em... fazer sexo? Estou vendo um homem aparentemente bem de saúde, bem apessoado e que poderia conquistar este mundo sem depender de...
- Me desculpe, mas não adianta a senhora falar assim – disse ele, aumentando a tensão. – Sei muito bem o que quero e se vim do Brasil para cá é porque esta necessidade se tornou excruciante. A senhora também deve saber que Sidney certamente nunca vira para sua casa reclamar de problema semelhante, visto que, apesar de também carregar a doença não sofre do mesmo jeito que eu. Aposto que ele nem sofre, pois arrumou um paliativo que pode deixá-lo seguro por um bom tempo, para ele e para sua filha. Eles estão se divertindo normalmente por aí, e como eu não posso desfrutar do mesmo gozo que o seu filho passa?
- Mesmo assim todo mês ele tem de beber sangue para não morrer, assim como você não pode fazer sexo para não morrer – igualou a mulher – Particularmente considero que vocês dois estão em posições semelhantes, a diferença é pouca. Está certo que ele tem a liberdade de transar, mas a questão do sangue...
- Eu sei, disso eu sei, mas ele anda sorrindo, brincando e se divertindo como um cara normal. Tudo o que eu quero é ser como ele, neste aspecto, mas eu preciso adquirir a cura para me tornar um cara completo. Ele não é completo, mas se sente, porque a questão do sangue mal afeta seu psicológico. Desde criança nunca se incomodou em alimentar-se de sangue pelo menos uma vez por mês, até porque ele gosta, mas eu não quero continuar passando por essa situação, pois não mereço. A senhora pode perguntar “ué, mas tem gente pior que você, que sofre por conta de defeitos físicos e mentais, acha que eles merecem o fardo que carregam?”, o que não quer dizer que eu seja obrigado a sofrer até a morte – disse ele, executando caretas ameaçadoras a cada palavra. – Eu já vivo em uma situação desanimadora, não tenho ninguém, só minha irmã me ajuda, meu primo me ignora há anos. Eu preciso sorrir, e nunca vou sorrir se eu continuar nessa.
- Acha mesmo que Rajendra não se importa contigo? – indagou ela, séria e calma.
- Acho. Desde crianças. Sabe, confesso que se eu conseguir a cura não perturbarei mais vocês, nem Sidney e nem ninguém deste lado do nosso clã. Eu não falo nem com meus parentes da porção japonesa, deixar de falar com os meus chegados da porção indiana daria no mesmo.
- Você carrega muita mágoa – disse a mulher, aproximando-se do visitante, que corara ao sentir perfume de jasmim. Fitou a extensão do pescoço da anfitriã, um pescoço particularmente sensual, que o excitou. Seu desejo era abraçá-la naquele momento. – Não estou querendo te enrolar, mas... como é exatamente sua vida no Brasil? E porque não quer ver seus parentes japoneses? Sabe que todos nós primamos e glorificamos a instituição Família, vê-lo solitário dessa forma sempre me cortou o coração. Você mesmo não se sente bem na condição em que está. Se eu puder ajudar com alguma coisa... me diga, como você vive?
- Estou morando na antiga casa da minha avó, na praia do Russel. Estou dividido entre... duas mulheres, mas quando retornar ao Rio de Janeiro resolverei isto. Me escute... eu preciso muito da cura. É capaz de eu cometer loucuras caso não tenha em minhas mãos. Me leve à pessoa que poderia ao menos me oferecer um paliativo. Sabendo da possibilidade de haver uma cura ou um paliativo e vendo que estou sofrendo significaria nada mais do que injustiça, insensibilidade contra minha pessoa – disse ele, tentando tocar as mãos da mãe de Sidney, com esta recuando lentamente. – Eu quero muito viver, mas quero viver completamente. Me ajude, por favor.

Jesminder Banerjee notara as lágrimas saírem dos olhos oblíquos de Cristiano, com este preocupando-se em enxugá-las rapidamente. Refletiu bem sobre o que seu visitante acabara de dizer, que seria injustiça saber da cura – ou de um paliativo, um maldito placebo talvez – e não entregá-la a ele. Sofrera, como sofrera ao ver que não era tão humano quanto os demais humanos, ao contrário de Sidney – que se divertira não sendo um humano em sua totalidade – Cristiano caminhava e convivia nas ruas com uma grande pedra de amargura, frustração e tristeza sedimentada em seu peito. Ele, que tanto batalhou para ser alguém completo, afirmou que não seria caso não pudesse domar a sexualidade. Ele queria tanto transar e ejacular em sua parceira sem temer sofrer um infarto que estava disposto a oferecer tudo para encaixar esta fatia em seu inteiro. Não tinha porque Jesminder ocultar a verdade. Ficou observando o nissei cair em prantos a ponto de não segurar as lágrimas, chorou abertamente, cabisbaixo e murmurando “eu estou no fundo do poço... estou no fundo do poço” enquanto soluçava como uma criança. Pensou em Laura, Elizabeth, na estudante namibiana... quão poderia se divertir com as mulheres deste mundo caso se tornasse livre. Chorou tudo o que tinha para chorar naquela conversa. Suas lágrimas empoçaram parte do chão onde seus pés estavam postos.

- Você devia ter vindo aqui há muitos anos atrás – sussurrou a mulher, tocando-o nos ombros. – Achei que estava tudo bem com você, assim como está bem com Rajendra, mas realmente, não devia tomar como unanimidade o que apenas um sentia. Eu consigo sentir a sua dor, não em sua totalidade, mas sinto. E me entristeço em saber que Sidney não teria dito nada sobre a cura para você.
- O... o quê? – indagou o homem, embasbacado e de rosto molhado. – Ele... ele... sabia da cura e não me disse em todas estas décadas? Ele sabia da porcaria da cura e não... não me disse este tempo todo? Há quanto tempo ele está sabendo?
- Desde os 10 anos de idade – respondeu Jesminder, delicadamente. – Naquela época eu fiz um enorme esforço para que ele se enquadrasse, para que fosse curado, mas o pai dele o afastou de mim por mais 10 anos e quando retornou eu já não podia fazer mais nada. Sem contar que Rajendra carrega uma postura rebelde que o fez desvencilhar dos meus planos. Queria que ele fosse um professor de Buhuwu, assim como você, mas se embrenhou na Medicina, ganhou prêmios, até se mudar para o Rio de Janeiro e construir uma clínica. – Sempre preferiu o pai, porque foi criado seguindo seus passos: falador, metido a engraçadinho, essas coisas. Ram nunca ligou para o que eu pensasse de seus métodos.
- E onde está o pai dele, agora?
- Trabalhando em Bandra, um bairro bem rico da Cidade Nova. Ele nunca gostou da porção japonesa de nossa família. Bom, voltando ao assunto original, eu posso conseguir a cura, sim. Mas, não aqui.
- Mesmo??? – indagou Cristiano, sorrindo.
- Sim. Mas, precisamos visitar uma pessoa muito especial em Thiruvananthapuram – respondeu ela, levantando-se com delicadeza. – Eu não posso sair daqui para ajudá-lo, entretanto, chamarei Bijitha, contarei tudo a ela, que absorverá os métodos rapidinho e vocês terão carta branca para viajar à Kerala. Tem certeza de que não quer nada para comer ou beber? Sua viagem não foi rápida, deve estar bem cansado, se quiser pode tomar um banho, também. – Jesminder cautelosamente abriu seu sorriso. Aconselhou seu visitante a não entrar em rompantes de alegria, pois talvez pudesse sair frustrado de tudo isto. Jesminder tinha a cura na palma das mãos, aborrecera-se com a negligência do filho e resolveu tentar encerrar todo o sofrimento de seu parente distante com a ajuda da filha mais nova. Bijitha, naquela hora, permanecia no quintal de casa, brincando com seus ratinhos, aguardando pacientemente as ordens da mãe, pois sabia que iria sobrar para ela, no fim das contas. Cristiano já saberia o que iria fazer em seguida: rumar com a pequena até Kerala, pois embora não parecesse Bijitha possuía um poder de persuasão, ou se aproveitaria de seu parentesco para resolver as coisas, etc. Ainda estava imerso na dúvida sobre o que ela iria fazer. Por um momento Jesminder temia que Cristiano assediasse sua filha, mas decidiu depositar sua confiança nele. Quando a mulher retornou para a sala de estar, chamou a guria, que apareceu de pronto. Explicou o que Bijitha devia fazer, além de acompanhar o sujeito até a casa verde, em Thiruvananthapuram. Ela rapidamente foi para o quarto se aprontar. Cristiano teve de aceitar tchai (chá) e pão, além das provisões, como Lassi (uma bebida láctea famosa na Índia), frutas e pães recheados. Devido o calor, não suportou e pediu para tomar um banho rápido. Minutos depois, estava novo em folha para encarar esta parte acrescentada em sua jornada.
- Nunca pensei que teria de usar minha filha para tal, mas não me arrependo – disse Jesminder para ele, deixando-o levemente culpado. – Vai dar tudo certo, pelo menos é o que eu acredito. Quero que vocês dois tenham uma ótima viagem, qualquer coisa, Bijitha, me ligue do celular que eu desço rapidinho para ajudá-los.
- Muito obrigado, muito obrigado, tive sorte em não ter topado com seu marido, provável que ele não me ajudaria – disse Cristiano.
- E não ajudaria mesmo – disse ela. Bijitha perguntou se sua mãe podia comprar as passagens pelo computador, mas Jesminder respondeu que o mesmo estava passando por reparos, era fato de que sua filha não gostaria de passar por filas, se embrenhar entre um monte de passageiros obrigatoriamente bigodudos e suados, mas a pequena lembrou que, sempre que podia sua mãe colocava desafios para ela superar. Viviam em um jogo de gato e rato que se dissipava em ocasiões importantes, originado do comportamento mimado e preguiçoso da guria, Jesminder considerou o fato de que ela só podia “reverter” este processo endurecendo a personalidade da filha. Por isto, pedia para executar as mais variadas tarefas. Percorrer centenas de quilômetros de trem – quando podia pagar um jato até Kerala, pois tinha muito dinheiro para isso – fazia parte deste desafio, visto também que a pessoa que poderia ajudar Cristiano não sairia do lugar tão cedo, e com isto ele aproveitaria para reconhecer o solo indiano. O nissei não pôde protestar sobre sua decisão, visto que praticamente estava nas mãos da mãe de Sidney e de sua boa vontade, mas aliviou a tensão ao recordar que viajaria ao lado de Bijitha. Podia aproveitar bastante deste tour, porque após receber a cura retornaria de imediato para o Rio de Janeiro – por conta do trabalho e de uma decisão a respeito da relação com Laura e Elizabeth. Prometeu retornar à Índia futuramente. Após Jesminder e os outros dois acertarem tudo, se despediram.

Em poucos minutos chegaram na estação de Thane, onde pagaram a passagem na classe Geral (G), um trem suburbano comum, parando em todas as estações (Classe 6). Bijitha perguntou se Cristiano tinha alguma documentação que comprovasse ser professor, mas não trouxera. Perguntou também se ele poderia comprar um Indrail Pass (inspirado no modelo Eurail Press, da Europa), que permite viagens ilimitadas no território indiano durante um determinado período. Ele respondeu que não precisava, visto que retornaria ao Brasil em dois tempos quando resolvesse sua situação. Bijitha lamentou o fato de não poder reservar as passagens de longa distância. Decidiu ficar no vagão especial para mulheres – situado em todos os trens da classe mais baixa de acomodação – , enquanto Cristiano permaneceu sentado no banco de um dos vagões normais. Sentiu-se perdido, um extraterrestre, e o fato de ser diferente fisicamente dos demais implicaria em importunações, pensou. Mas, ele não queria sentir-se à vontade na Índia? Temeu ainda mais ser passado para trás pela menina, que poderia largá-lo ali e tudo mais – ele podia retornar à residência dos Banerjee, mas mesmo assim sentiu medo na possibilidade em ser ludibriado. Relaxou, e o trem partiu em direção a Neral, onde logo depois pegariam a linha em direção a Panvel. Eles precisavam se ver em Panvel, especialmente pela estação daquela cidade ser uma das maiores da Índia.

Poucos minutos depois o trem chegou a Panvel. Cristiano, atento e temeroso durante toda a primeira parte da viagem, seguiu direitinho as instruções da menina. “Fique no vagão até eu te encontrar”, disse ela. E apareceu sorrindo para ele. A turba de passageiros percorrendo a estação era imensa, maior que a da estação Central do Brasil – no Rio de Janeiro – o falatório e risos eram muitos, ele podia facilmente perder-se naqueles bigodes, sáris e túnicas, mas facilmente podia ser achado, visto o seu fenótipo inconfundível entre o povo. Os dois permaneceram juntos, com Cristiano comentando que viajaram em um trem elétrico e bastante bonito, mas ela respondeu que por enquanto podiam gozar destes trens de melhor qualidade, visto que ainda estavam próximos a Mumbai.

“Vou comprar nossas passagens daqui para Trivandrum”, disse ela, antes de ir ao guichê. Trivandrum? Ah, o outro nome de Thiruvananthapuram. “Quero um Expresso de Shatabdi, duas passagens”, disse ela ao bilheteiro, referindo-se a uma categoria de trem interurbano com ar condicionado. Os olhos curiosos de Cristiano não paravam de correr pela estação. Depois disso Bijitha pegou seu braço e rumou para uma loja de doces, onde comprou dois pacotes grandes de biscoito, dividindo-os para a dupla encarar a extensa viagem que seguiria a partir dali. Em 5 minutos o trem de nome Trivndrm Rjdhni, de número 2432. “Este vai direto, não precisamos fazer mais baldeações”, disse ela. Era um trem denominado AC – 2 fileiras (AC tree tier): Vagões com ar condicionado e beliches, amplas compartimentos, cortinas e lâmpadas de leitura individuais. Os beliches são geralmente dispostos em duas fileiras em baias de seis, quatro no sentido da largura do vagão, em seguida, o corredor, e então, mais dois beliches longitudinalmente, com cortinas para dar alguma privacidade daqueles que passam pelo corredor. Os leitos estão inclusos com a tarifa. O vagão de bitola larga pode transportar 48 passageiros.

Tinham acentos vagos.


Última edição por Admin em Dom Dez 05, 2010 3:26 pm, editado 2 vez(es)
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Womb segunda parte Empty Re: Womb segunda parte

Mensagem  Admin Dom Out 03, 2010 12:21 am

Puderam acomodar-se sem maiores problemas, o ar condicionado refrescava – especialmente a nuca de Cristiano, promovendo pequenas cócegas – e Bijitha sentia-se a poderosa enquanto via os demais passageiros lá fora e tendo de encarar um modelo mais pobre de trem. Se fosse para rodar a cidade, teria de ser em expressos rápidos e com ar condicionado, pensava ela. Fora da barra do sári de sua mãe, andar de trem sozinha configurava no ápice de sua diversão. “Vamos encarar 1 dia inteiro de viagem, ai, se pudesse rodar todo o mundo dessa forma me sentiria muito feliz”, disse ela para Cristiano e um pouco para si mesma. Em poucos minutos o trem partiu, levando com ele a vontade intensa de viajar sustentada pela Banerjee e a apreensão mesclada com a curiosidade carregada pelo Mamiya. E passaram a estalar os dedos e alongar o corpo, pois mais de 24 horas seriam tomadas daquela viagem.

Algumas horas e eles já estavam chegando à cidade de Goa. Cristiano adormecia enquanto Bijitha comia, queria despertá-lo, mas como teve medo de aborrecê-lo decidiu não fazer, então, prosseguiu apreciando seu sanduíche, além do chá gelado que ela mesma havia preparado. Logo, fitou bem o rosto de Cristiano e notou que este pendia o pescoço para a janela do vagão, a boca aberta e os olhos oblíquos fechados que o deixavam ainda mais bonitinho. As mãos de sua companheira de viagem coçavam e ela queria ao menos colocar sua cabeça em uma posição que não a perturbasse – pois, com o pescoço inclinados de forma tão bizarra parecia que o crânio dele seria solto – , então tratou de acordá-lo, aguardando também sua reação. “Já chegamos?”, perguntou ele, mais grunhindo que falando. “Não, ainda estamos em direção à Goa, o pessoal costuma falar português, na próxima vez que você der uma passadinha na Índia te convidarei para conhecer este lugar”, respondeu ela, sorrindo graciosamente. Ouviu um preguiçoso “legal” e ele voltou a dormir, mas do mesmo jeito incômodo de antes. Bijitha agiu rápido e disse para ele posicionar-se de forma a não lesionar o pescoço, e demorou um tempão para que ele captasse a mensagem. Enfim, virou-se de lado, com as costas para ela, estando de conchinha, endireitou o travesseiro e voltou a dormir. Bijitha voltou a comer, mas sem a mesma vontade de antes.
E eles passaram por Goa, Bijitha adormeceu enquanto o expresso cortou a cidade de Mangalore. Cristiano ainda dormia, vivendo um pretensioso sonho, decidido a acertar as contas com o fantasma que o assolava.

“Tudo aquilo era novo e assustador para mim. Eu sempre fui uma criança chorona e mesmo com 40 anos de idade as coisas não foram diferentes porque sustentei-as durante todo este tempo. Fui acuado pela doença rara e seu modo de vingança – por ter transado – enquanto que este medo adquiriu a habilidade de passar do corpo para a convivência, para qualquer coisa ou pessoa que passasse por mim. Eu era um inválido e vivi como tal, considerando a vida uma praga, muitas vezes pensando na morte e em como morrer, as tentativas de suicídio sempre bateram à minha porta, mas tinha medo de executar, pois no fundo acreditava que as coisas podiam mudar e mudar por meus próprios esforços. Até hoje não me dou o luxo de confiar em meus amigos, Sidney é um merda, uma pessoa que não sentia o mesmo apreço que sinto por ele, sempre foi de me negligenciar aos poucos, egoísta – apesar de ajudar muita gente sem aparentemente nada em troca – que conseguiu aproveitar o lado bom de sua doença, tomando seu golinho de sangue por mês, enquanto que sua filha também fora arrebatada por este mal sabe-se lá como. E eles estavam lá, fazendo sua festinha particular enquanto quase sempre estive morando há poucos quilômetros dele, encalacrado na praia do Russel, como se esperasse a angústia se tornar tão insuportável a ponto de me fazer decidir se devia me matar ou devia retornar ao Japão... retornando ao Japão teria meu porto seguro, nos braços de minha irmã, apaixonada por mim. Já permanecendo no Rio, poderia tentar mudar meu futuro, já estava tachado de fracassado pelos grupos na qual fiz parte, fracassado, estranho, e eu me arrependo de ter reforçado esta pecha, porque eu também errei. Cheguei errado nas pessoas, as ignorei quando deveria abraçá-las e tornei minha vida ainda mais imbecil. É claro que com a cura da doença poderei mudar e ter as mesmas condições de um ser humano normal, mas eu já não devia ter mudado? Já não devia ser um pouco menos mesquinho, já não devia ser menos encerrado em minhas particularidades? A minha vontade era de não retornar ao Rio, ver algum jeito de me enfurnar na Índia ou no interior do estado do Rio de Janeiro, mas meus problemas me seguiriam em qualquer lugar que fosse. Eu reconheço meus defeitos, reconheço o que trago de mal para mim, mas ainda não é o fim. Posso melhorar, posso ser mais receptivo com as pessoas, parar de culpar tudo e a todos pela minha vida de merda, parar de dar murro em ponta de faca, porque senão acabarei morrendo e me arrependerei de qualquer forma por ter levado essa vida de merda. Peguei um trabalho de auxiliar de serviços gerais invés de professor? Beleza, ao menos ganharei uma grana, eu não posso recusar trabalhos, já que não tenho a mesma condição financeira que Sidney e mesmo se tivesse teria de aprender a dar valor aos pequenos trabalhos, pois sem eles os grandes não seriam nada. Eu já devo estar enchendo o seu saco com essa retratação que mais parece figurar um livro de auto-ajuda, mas vou parar por aqui. Eu prometo que vencerei na vida e mudarei meu estilo de vida quando eu adquirir a cura. Não adquirindo-a mudarei da mesma forma. Também não posso me assemelhar a Sidney. Somos tão diferentes que colocar-nos na balança é algo tão estúpido quanto desnecessário”.

Nossa, que monólogo mais bonitinho...e clichê.

Kerala.

1 dia inteiro se passou e Cristiano caminhava pelo trem – para esticar as pernas – e quanto Bijitha descansava totalmente esticada, com os pezinhos no corredor, atenta no caso de alguém passar por ali. Cristiano já se considerava familiar naquele veículo, metera a cabeça para fora, pois necessitava sentir o vento e observar as montanhas e o litoral. O fez com um sorriso no rosto. Passado todo o medo, sentiu vontade de morar ali. Cada vez mais que o trem aproximava-se de Thiruvananthapuram sentia-se em casa, o calor aumentara, mas seu corpo já se adaptara. Foi ao banheiro, tomou uma ducha e encheu a garrafa de 2l com água até a boca, já que sentiam sede rapidamente. O expresso já havia passado pelas cidades de Kasaragod, Kannur, Kozhikode e Kottayam, umas das mais importantes do estado. Thiruvananthapuram situava-se ao extremo sul de Kerala. Ele tinha vontade de ver mais elefantes, de nadar na praia, podia realizá-lo, mas primeiro colocava sua cura em primeiro lugar. Não entendia o porque da família de Sidney – ou melhor, Rajendra – ter saído de Kerala, já que não conseguira sentir a mesma beleza em Mumbai, uma metrópole turbulenta maior que São Paulo e Rio de Janeiro.

Cristiano almejava ser livre de cidades caóticas, por isso mesmo corria em sua cabeça a vontade de sair do Rio quando melhorasse a condição financeira. Mais algumas dezenas de minutos e o povo já se arrumava para descer, a estação Trivandrum Central se aproximava e Cristiano tratou de acordar Bijitha, que da mesma forma que ele, dormia babando e com a cabeça inclinada bizarramente – mas ao contrário dele, cumpria este papel com certa beleza e charme involuntário. Sabia que ela tinha problemas em tocá-lo, mas não sabia se tal comportamento originava-se da religião da menina, o Hinduísmo. Cristiano não tinha religião alguma em conta, considerava-se agnóstico, embebido em certo temor em ser mais um habitante de um suposto inferno, caso morresse. Outrora, na infância, andava de mãos dadas com o Budismo Zen – o mesmo de seus pais e da sua porção familiar – , mas caiu em si e passou a apenas acreditar em uma força superior, criadora do Universo e dos seres humanos, e abraçou a condição agnóstica há 5 anos atrás. Mandando à merda as crenças de Bijitha, pegou sua mão direita e seu rosto, balançando-o levemente para que ela acordasse. “Vamos, já estamos chegando na estação final”, sussurrou ele, ao pé do lindo ouvido da morena, que despertou bocejando e se espreguiçando. Atrás deles, uma enorme fila formava em direção à uma das portas do vagão. Bijitha nada disse, segurou sua bolsa e pediu para que Cristiano apanhasse sua mochila, pois também não queria ser incomodada com uma ocorrência de furto.

Desembarcaram, bastante colados. A enxurrada de passageiros que seguia seus passos até a saída da plataforma assustava Cristiano, este preocupou-se em não cessar seus passos, especialmente porque tinha ciência de que ser pisoteado era uma grande possibilidade naquele momento. Bijitha pegou seu pulso com força e desvencilharam-se da turba seguindo pela direita, depois a multidão obrigatoriamente se dispersou para as demais divisões da estação. Trivandrum Central era parte da história daquela porção indiana de sua família, a maior estação ferroviária do estado de Kerala. Cristiano respirou fundo quando saíram da estação, virou as costas e observou a arquitetura de alvenaria de pedra do edifício. Bijitha disse que deveriam tomar um tuk tuk (é um triciclo com cabine para transporte de dois ou três passageiros muito utilizado em grandes cidades da Índia e do sudeste asiático, nas quais o trânsito é muito congestionado) até Varkala, cidade á 45 kms ao norte de Thiruvananthapuram.

- Estou cansado de ficar sentado – reclamou ele, acariciando as costas. – Quanto tempo mais vai levar?
- É só mais uma hora de viagem – respondeu a menina. – Pelo menos tudo isso está servindo para te dar uma cor, quando apareceu lá em casa estava tão branco, tão pálido, o tornando ainda mais diferente neste lugar que você considera tão exótico.
- Eu realmente preciso pegar uma corzinha, se tiver oportunidade vou querer nadar, entre outras coisas, senão minha viagem será incompleta – acrescentou Cristiano, inclinando as costas para a frente. – Veja só, eu não sabia que a população de rua aqui era tão grande... se comparar com Mumbai aqui parece o paraíso, mas com este maldito contraste...
- Se isto é comum no país onde você vive, imagine aqui, sendo pior que o Brasil... – disse Bijitha, de braços cruzados. O tuk tuk já partira e percorria o litoral da cidade. – Essa visão “romântica” que muita gente de fora pensa daqui é totalmente infundada e imatura. A mesma visão romântica e glamourosa que pensam do seu país!
- A romantização da pobreza – disse ele, entrelaçando os dedos. – É tão clichê que irrita.
- Obviamente. Quanto ao senhor nadar, fique tranquilo que conseguirá fazê-lo ao chegarmos à Varkala – disse ela, sorrindo graciosamente a ele. – Cristiano percebera que sua acompanhante havia trocado de roupa durante a viagem, certamente enquanto ele dormia no trem. Estava mais bonita que antes, trajando um sári predominantemente vermelho e verde por baixo com pontinhos brancos, as mesmas pulseiras brilhosas e multicoloridas, além dos brincos discretos de brilhantes falsos e o cabelo repartido pelo lado esquerdo da cabeça. Riu quando notou que a fisionomia da moça assemelhava-se a da maioria maciça das mulheres indianas: olhos grandes e castanho-escuros, nariz saliente, pele morena-jambo e um razoável porte físico. Não faltava carne no corpo da maioria das indianas. Por um momento, ao fitá-la de esguelha, sentiu vontade de abraçá-la e mordê-la por inteiro, e quis perguntar para ela se permitia, pois achava que não tinha nada a perder. Esbanjava fofura (não obstante o termo, estava longe de ser gorda) e candura, a ponto de, além do desejo de devorá-la amorosamente, de levá-la ao altar e retirá-la daquele país. Todavia, era só ímpeto. Teve ciência de que complicaria sua vida e a dela, pois Cristiano não mandaria à merda Laura e Elizabeth, mesmo as duas estando em situações próprias para ser abandonadas por ele. Mandou à merda foi seus pensamentos libidinosos acerca de Bijitha.

50 e tantos minutos depois, chegaram à praia de Varkala. Bijitha retirou algumas rúpias (moeda indiana) de sua carteira e entregou ao motorista, que agradeceu especialmente pelo adcional – visto que não tratava-se de um barbeiro. – Acabei cometendo um erro, podíamos pegar um trem para Varkala – disse ela, pensativa. Cristiano respondeu: - Tudo bem, coração, já estamos chegando lá – percebendo a garota corar por ter sido chamada de “coração”. Caminhando por mais alguns metros e atravessando uma via, chegaram na porta de uma casa próxima a um precipício com vista para a praia. Palmeiras abundantes, ventos fortes e canto de pássaros. Cristiano sentou-se bruscamente no chão, apresentando estafa e seus olhos faziam esforço para manter-se abertos, explicitando o que já sofrera desde as 2 horas recentes de viagem. Simplesmente precisava de uma cama. Bijitha agachou-se com elegância até ele, aproximando-se de seu rosto, tocando-o como se estivesse curiosa. – O senhor vai poder dormir aqui – disse ela, sorrindo. Levantou-se e apertou a campainha. Em 30 segundos uma menina de madeixas curtas e vestido azul pontilhado com desenhos vermelhos correu na direção deles, atendendo-os. “Namaste! Eihi já nos conhece, pequenina”, disse Bijitha. Uma mulher irrompeu pela porta de casa e gritou para que a guriazinha abrisse a porta. Atendeu prontamente. “Vamos”, disse a jovem para o quarentão, e este levantou-se com dificuldade.

Eihi ajudou a socorrer Cristiano, tocando em seu corpo firmemente e deixando-o deitado na rede instalada na varanda. Cumprimentou Bijitha e pediu para que a criança trouxesse chá e arroz doce para eles. “Então, você é Eihi?”, perguntou Cristiano, bem acomodado. “Eu... já sonhei contigo, mas... era uma professora oriental, assim como eu”.

- Sou uma médica meio-japonesa, mas do seu mesmo clã – disse a mulher, trajando um sári branco e dourado, mas negro por baixo. – Jesminder me contou tudo enquanto vinham para cá.
- Olha para a cara dele, passou dois dias no avião para Mumbai e um dia de trem pra cá... – murmurou Bijitha, - está muito cansado, por favor, tem como prepararmos um banho para ele?
- N-não precisa de banho de chuveiro... fiquei de me banhar na praia... – disse Cristiano.
- Está quase anoitecendo e está ficando frio, se bobear você se perderá, melhor se banhar no conforto da casa – disse Eihi, a frente dele. – Sabe, já nos vimos há anos atrás, eu era uma das professoras auxiliares de Ram. Lamento por não ter conhecido sua família japonesa, mesmo sabendo que eles também têm nosso sangue. Quando Jesminder me contou sobre seu sofrimento senti um aperto imenso no coração e percebi que não podia dormir direito até resolver teu problema. Você sairá daqui curado, porque você tem eu e Bijitha para ajudar.
- Obrigado – respondeu ele, sorrindo. A seguir, ergueu sua mão direita, indo acariciar o rosto redondo de Eihi. – Vocês indianas são muito bonitas. Eu podia morar aqui em Kerala se vocês quisessem.
- Primeiramente teria de aprender a falar o malaiala correto, você só fala marata – falou Bijitha, sorrindo de jeito levado. – O senhor tem uma vida no Brasil, como sabe, aqui é pior que lá, não complique sua vida.
- Já estou acostumado a passar por tribulações – disse Cristiano, acariciando Eihi, que sorria timidamente. – E eu não tenho uma vida lá, viver a vida que vivo não quer dizer nada. Está certo que as pessoas só dão valor quando perdem algo, mas... eu não me arrependeria – a pequena trouxe o chá, servindo imediatamente ao visitante, que tomou tendo a cabeça sustentada pelos braços fortes de Eihi. Bijitha acompanhava tudo tremendo os dedos e de braços cruzados, como se esperasse por algo. – Este chá é muito gostoso, tem um sabor diferente... não perguntarei do que é feito, haha.
- Você está pronto? – indagou Eihi, segurando com delicadeza a mão que acariciava seu rosto.
- Sim. Pronto para qualquer coisa. Já nasci pronto. O destino me deve o bem viver, a partir de amanhã tudo será diferente – respondeu Cristiano, sentindo o peso dos olhos e não lutando para deixá-los abertos. A respiração aquietava-se, a língua adquiriu dormência, suas palavras passaram a ser ainda mais pesadas. Bijitha observou o companheiro de viagem e parente distante adormecer, até este ter um acesso de agitação que derrubou as duas mulheres e a criança. Disparou assustado e cansado para a entrada/saída da casa.
- O que você está fazendo? – indagou Bijitha, com Eihi sendo ajudada a se erguer pela menininha.
- Vocês não me matar, não é? Vão me matar! – bradou Cristiano, desesperado. – Querem que eu durma para beber o meu sangue! Vocês são todos uns vampiros, assim como Sidney e a filha dele, vocês são vampiros!
- Está maluco, não vamos lhe fazer mal algum! – gritou Eihi. – Viajou tanto para amarelar desse jeito?
- Mesmo se fôssemos, você também seria, pois é da nossa família – disse Bijitha, aparentando calma. – Não faça nenhuma besteira, está com a oportunidade de se livrar dessa doença, quer abusar da nossa boa vontade? – Bijitha desceu as escadas da varanda querendo alcançá-lo, entretanto Cristiano correu e correu em direção ao precipício, entendendo que, se não tivesse como escapar das suas futuras assassinas se mataria com estilo. Naqueles poucos minutos, pensou em Sidney, Bonnie, na estudante namibiana, nas porções japonesa e indiana de seu enorme clã, em Laura, em Elizabeth e em Bom. Certo que não significavam nada diante da tensão que vivenciara ali. Bijitha correu ainda mais rápido (com Eihi logo atrás) e por centímetros, não conseguiu impedir com que Cristiano Mamiya se jogasse. Perdeu a consciência ao lançar-se de corpo inteiro ao vento.

Seria cômodo e coitado demais, percorrer tantos quilômetros, tantos dias de viagem para morrer na praia – literalmente. Cristiano, acho que está na hora de você deixar de ser imbecil. Depois desta demonstração assustada de que não daria tudo para melhorar sua saúde você perdeu pontos comigo, mas não é o fim. Tanto não é o fim que acabei salvando sua vida. É o seguinte, você saiu do Rio de Janeiro com a melhor das intenções, desesperado em arrumar uma solução para um mal que te aflige por anos e anos a fio, minha mãe, inocente que só, achava que seu melhor amigo já tinha “cantado a bola” para ti, no intuito de te tirar da merda de uma vez por todas, mas foi enganado, é claro. Enganado por ele e por si mesmo. Você se configura em um fracassado tão especial que me dá ainda mais vontade de ajudá-lo, pois além de praticamente não ter ninguém ao seu favor, faz crescente em seu coração a vontade genuína de sobreviver, isso antes de você resolver se jogar do penhasco. Tem coisas a resolver. Eu não suporto gente covarde, é claro que para se matar a pessoa se abdica de 50% desta covardia, mas tem que entender que ainda não é sua hora. E porque não é? Porque “este lado da guilda” preocupa-se bastante contigo. É certo que não sabíamos exatamente sobre seu paradeiro enquanto estava definhando no Rio de Janeiro, mas sua presença tornou a deixar viva e acesa a chama do altruísmo parental e do amor que depositaríamos em você. Por isto mesmo devemos mante-lo vivo, você precisa estar vivo, não apenas por nossa causa, sabe disso, mas para um tolo de 40 anos como ti melhorar a vida. Eu e minha mãe estamos dispostas a ajudá-lo no que for possível, mas se matando você alegraria Rajendra – Sidney – e seus propósitos. Seu “melhor amigo” não significa nada, pois uma pessoa que omite a verdade e o deixa viver à própria sorte, com a doença devorando sua mentalidade, não merece ser chamado de “melhor amigo”. Não é. Oficialmente, você tem a gente. Estava com medinho de que eu e Eihi sugássemos seu sangue, né? Compreensível, mas e se este fosse o único jeito de extirpar o câncer que é sua doença? Quer queira ou não terá de se submeter aos métodos. Mais do que ninguém sabe que as coisas boas não vêm com facilidade. Viva novamente, querido. É a oportunidade perfeita para dizer "Chupa, Sidney", pois ele merece.

Cristiano – antes de desmaiar em pelo ar – notara segundos após o pulo que fora pego por um braço forte e feminino, envolvendo-lhe o tórax. Enquanto executavam uma volta precisa também pôde sentir os pés cortando a corrente de ar, suspensos há dezenas de metros do chão. Segundos depois, já estava piando solo firme. Eihi respirou aliviada, a menina atrás dela assustada e Bijitha o pegou no colo, levando-o para a varanda. Precisava terminar a tarefa.

Combinou mesmo de resolver suas pendengas com Laura e Elizabeth quando retornaria ao Rio de Janeiro? Era o melhor a fazer. Desejar morar na Índia constatava em um desejo impetuoso, como dito por criança ou adolescente. Seu destino era o Rio, onde ele podia manifestar primeiramente os resultados de sua cura, demonstrar que rompera o elo que unia sua vida na prisão imposta pela doença.

Despertou no dia seguinte.

Seus dois cotovelos formigavam bastante, verificando com afinco notou que haviam curativos em suas extremidades. Além disto, havia um band aid preso ao seu coração, podendo já ser retirado naquele momento – retirando-o, fitou um pequeno ponto preto, decidiu não mexê-lo. Estava convencido de que, seja lá o que ocorrera no momento em que dormia, aquelas áreas do corpo foram mexidas. Cristiano dormia em uma confortável cama de solteiro, no interior da pequena chácara. Vendo a paisagem pela janela, notou também que ainda estava em Varkala, em frente à praia, com a visão do penhasco no qual soltou há horas atrás. Respirou fundo e sorriu envergonhado, por ter sido dominado pelo medo, temia realmente ser “alimento” das 3 mulheres, após viajar tanto para chegar àquele destino. Seus membros doíam um pouquinho, mas não o bastante para segurá-lo na cama, então, levantou-se sofregamente e caminhou no interior da residência, procurando as mulheres sem emitir uma palavra de sua boca. Logo, foi pego de surpresa, com duas palmas de mão femininas cobrindo seus olhos e a pergunta penetrando em seu ouvido. “Advinha quem é?”. Cristiano disse o nome de Bijitha, e realmente tratava-se dela, que o abraçou abertamente. Como não estava sendo observado, retribuiu aquele abraço forte a abraçando também. O cangote e as axilas da indiana cheiravam a jasmim, enfeitiçando-o por alguns minutos. Perguntou para ela: “O que vocês fizeram comigo?”.

- Uma transfusão de sangue, simples assim – respondeu a menina, sorrindo genuinamente. - Era o único jeito de te manter vivo sem a doença.
- Sério? - indagou ele, impressionado e imediatamente tocando os pontos do corpo que insistiam em formigar. - E há quanto tempo eu estive dormindo?
- 3 dias. Você quase morreu, foi muito difícil te tirar das mãos do Rokurokubi, ele pretendia te devorar desde seu nascimento, ao contrário de Sidney, que recebeu uma modalidade diferente da doença e pode viver com ela sem problemas, a não ser que beba sangue pelo menos uma vez por mês. Ele e a filhinha dele – respondeu ela.
- Eu sei disso, mas a pergunta que não quer calar é: o Rokurokubi parasitava em meu corpo ou algo do tipo?
- Isso mesmo – respondeu Eihi, surgindo da cozinha junto com a pequena. - Sente-se, acho que você conhece a história de nossa família até os dias atuais, mas irei repetir assim mesmo. - E ele sentou em uma poltrona vermelha.

Há mais ou menos 200 anos uma das gerações da família Mimizuki vivia em Kyoto, no interior do Japão, dividida entre camponeses e samurais. O pai de família do clã naquela geração era servo do daimyo (senhor feudal) local e principal guarda costas deste enquanto a maior parte de seus familiares trabalhava no campo, produzindo arroz para saquê, a bebida alcoólica japonesa. Eles dominavam a plantação de arroz vermelho do país, donos de um campo mui vasto desta planta, e isto chamou a atenção do daimyo, que, provando a alta qualidade do cereal – um sabor mais encorpado e ligeiramente mais forte que o arroz branco – em saquê e na comida convenceu-se de que deveria comprar aquelas plantações, especialmente pelo valor nutritivo do arroz tornar seus consumidores mais “cheios”. Após uma rápida negociação ele comprou e os Mimizuki passaram a desfrutar de uma quantia em dinheiro bem expressiva, tornando-os ricos, aumentaram suas terras, mas foram impedidos de plantar arroz vermelho em outros lugares, os fazendo se arrepender do negócio. O daimyo acabou mandando assassinos para cuidar dos que protestavam incessantemente, provocando a morte de 5 familiares, e com isto, o pai de família dos Mimizuki acuou, fustigado por uma batalha mortal contra 2 samurais de seu chefe, e refugiou-se em uma gruta desconhecida.

Ele não sabia que tal gruta abrigava uma criatura que, por um bom tempo fora considerada mitológica, povoando histórias escritas e faladas, tal qual o Saci Pererê é considerado mito o Rokurokubi era nada mais que um ser mitológico, que tomava a forma humana durante o dia, um youkai, uma criatura sobrenatural que à noite esticava o pescoço a alturas consideráveis.

Durante o dia, os Rokurokubi aproveitam a forma humana para viver sem ser notado pelos humanos. Vários Rokurokubi se acostumam a viver na sociedade mortal, criam planos e escondem suas formas demoníacas. Eles são metamorfos por natureza, e geralmente não resistem e espionam a vida dos humanos. Algumas vezes os Rokurokubi revelam sua forma verdadeira para os alcoólatras, bobos da corte, pessoas dormindo, ou cegos. Alguns aumentam seus pescoços enquanto dormem como uma ação involuntária.

Em algumas lendas, Rokurokubi são pessoas normais que foram transformadas pelo karma ou por quebrarem vários conceitos budistas. Em alguns casos os Rokurokubi comem pessoas e bebem sangue humano.

Obviamente, ninguém sabia que eles existiam. O chefe dos Mimizuki fora seduzido por um na gruta, tomando a forma de mulher, mais precisamente de sua esposa falecida. Levou-a para casa, ignorando as juras de morte feitas pelo daimyo , e chegando na residência deparou-se com os dois assassinos preparando-se para emboscar o resto da família. Em um assomo de fúria o homem enfrentou os assassinos, levou a pior e morreria, caso o Rokurokubi não se solidarizasse com ele e matasse os algozes. O homem perdia muito sangue e viria a falecer, caso não fizesse um contrato com o monstro, que queria reviver eternamente: se não adentrasse ao corpo e metabolismo dele e de parte daquela família o samurai morreria, mas precisaria ter sua carne devorada. Concordando com isto, o homem presenciou o Rokurokubi se suicidar à sua frente, o samurai o devorou, e os genes sobrenaturais do youkai percorreram como doença nas próximas gerações durante muito tempo, nas mais diferentes variações, vantajosas ao hospedeiro ou não. Então, Cristiano, caiu na sua vida que por causa disso, você não podia transar, senão morresse. E Sidney viveria, caso bebesse sangue 1 vez ao mês.

- Mas, tem uma coisa... eu não voltei a ser um humano normal. Se bem que eu nunca fui um humano normal. Vocês apenas modificaram meus genes misturando meu sangue com o de Bijitha para amenizar os males, não para me fazer “voltar ao normal”, porque isto é virtualmente impossível – disse Cristiano.
- Hum... sim – respondeu Eihi. – Agora você está na mesma condição de Rajendra, tem as mesmas qualidades e defeitos da condição especial dele. Foi tudo o que Jesminder, Bijitha e eu podemos fazer por ti. Quero que você nos desculpe por não fazer exatamente o que você queri... – Eihi mal terminara de falar enquanto Cristiano saltou da poltrona e pedindo licença, procurou a geladeira. Abriu-a e retirou uma jarra com água fresca, encheu um copo e tomou. Expressando surpresa e susto, encheu mais 3 copos e os tomou. Nada. Sua sede não fora tão saciada, como previa. Realmente tornara-se uma espécie de vampiro, um monstro como seu melhor amigo Sidney Silvestre. Quase derramou a jarra pela metade ao chão, respirou com dificuldade e pediu às três se pudessem lhe providenciar sangue, um pouquinho que fosse. A menininha aproximou-se dele com graciosidade e estendeu o pulso direito em direção ao professor. Logo após, utilizou a unha comprida de seu polegar esquerdo para fincar levemente a carne, fazendo-a sangrar. “Pode beber um pouquinho”, disse a menina, sorrindo espontaneamente.
- Não precisa disso – murmurou o nissei, mas Eihi comentou que não dispunham de bolsas de sangue naquela hora, portanto, utilizaria sua filha para alimentá-lo, lembrando que não necessitava tomar sangue todos os dias, 1 vez ao mês bastava. Ele não precisava envergonhar-se, visto que não executaria o ato no meio da rua, estava entre amigas. A pequena prosseguia com seu sorriso, sem forçar, desejando de coração que seu querido visitante ficasse bem, pois ele merecia. Ninguém ali sofrera tanto psicologicamente quanto ele. Cristiano aproximou-se dela e pôde sentir com clareza a respiração tranquila, os batimentos cardíacos idem e o cheiro natural de criança que simplesmente dopava seu coração.

Cristiano comprimiu com leveza seu peito no tronco da guria, tomando o pulso sangrando com delicadeza, levando-o à altura da boca. A menina continuava fitando-o, embebida no pensamento de fazê-lo sentir-se bem. Por fim, o nissei chupou a miúda ferida, sorvendo com cuidado para não machucar a criaturazinha. Bijitha esboçou um sorriso aliviado enquanto Eihi manteve-se séria e compenetrada, observando tudo sem piscar. Cristiano absorvia o sangue alheio com cavalheirismo, com a mão esquerda abraçando o corpinho, tal qual um passe de tango. Concentrava-se tanto em matar sua sede que seu corpo fazia o da menina inclinar para trás, ela tornou a gemer em um crescendo, mesclando prazer e uma pitada de dor, esta fora aumentando conforme os segundos se passavam, sua perninha esquerda enganchou-se na costela de Cristiano e cada vez mais se mantinham unidos, como uma só pessoa. Ao passar a gemer alto, o professor cessou sua atividade , afastando o braço da pequena, que em milésimos de segundo teve o tecido ferido regenerado. Estava novinho em folha. Cristiano deitou-se no chão, com a boca suja de sangue, perguntando para si mesmo: “1 vez por mês terei de fazer isso. Não posso acreditar”. Bijitha foi acudi-lo, abraçando-o.

- Não tivemos escolha – disse ela.
- Eu não tenho uma reserva de sangue inesgotável para beber, como o Sidney, o que farei? – perguntou.
- Sempre te mandaremos caixas contendo bolsas de sangue até você conseguir se virar por conta própria, é uma promessa que eu, Eihi e mamadi estamos fazendo – respondeu a mulher. – Por favor, confie.
- Eu... senti que essa menina é...
- Um Rokurokubi – completou Eihi, pedindo para que sua filha demonstrasse, e em segundos todos observaram seu pescoço adquirir elasticidade, aumentando de tamanho até atingir a porta, depois retornando ao normal. – É a guardiã dessa casa e dessa cidade.

Em seguida, a pequena, recomposta, aproximou-se de Cristiano e o abraçou com força e ternura. “Me desculpe por tudo”, disse ela, em sinceridade. Dominado, adormeceu em seus pequenos braços.

Despertou. Seus olhos correram por todo o ambiente. Estava na casa de Jesminder. Mas, como ele havia parado lá? Pensou que certamente tinha sido transportado para lá pelas mulheres que receberam o sujeito, logo, humanamente falando ele só apareceria ali sendo carregado, mas ainda haviam mais coisas para ser solucionadas. Por que aconteceu aquilo? Tá, elas tinham terminado a operação e ele provavelmente estava livre, livrinho da silva, mas não o suficiente para poder dar pulinhos de alegria e cantarolar como uma criança. Evantou a cabeça e notou que a sala de estar jazia de tão fria e vazia, combinando perfeitamente com seu jeito de ser. Mas os tempos são outros, “os tempos são outros”, pensou consigo. Levantou-se do sofá e moveu os pés, mas estes pareciam tão pesados, como se dormisse por anos a fio, ininterruptamente. Sua boca queria mover-se, Cristiano queria falar, emitir algum ruído que fosse, mas só saíam grunhidos incompreensíveis de sua garganta. “Que... que merda é essa? O que está acontecendo comigo?”

Subitamente, passos pesados rumavam no andar de cima. Cristiano virou a cabeça e olhou para o teto, pondo seus ouvidos para trabalhar. Captou que os passos andavam em direção à escada em espiral que dava acesso à sala de estar, lá embaixo. Cada vez mais o coração do nissei bombeava mais rápido, como um tambor, qualquer pessoa – obviamente – podia descer aquelas escadas. Podia ser Jesminder, a filha dela, o pai de Sidney, quem sabe ele mesmo? Como o sujeito era naturalmente um malandro, podia aplicar uma pegadinha a qualquer hora, qualquer momento. Mas o que ele iria fazer a respeito? Encontraria o melhor amigo na casa de sua família, o máximo que faria era perguntar “o que está fazendo aqui?”, o usual. O pior podia acontecer, como uma discussão louca sobre Cristiano ter ou não a doença – mas disto ele já estava convencido, tinha a doença, sim - , o por que de Sidney ter omitido a verdade, entre outras coisas. O mundo dos dois acabaria ali. Digo, o do Cristiano, pois Sidney gozava de intensa invulnerabilidade.

Cristiano forçou seus dedos pequenos e leves na superfície do sofá e levantou-se, para poder encarar de frente o seu possível oponente. As intensificações do seu coração aliviaram gradativamente quando a tal pessoa se revelou nada mais que um homem gordo, franjudo e de terno bege, além de sapatos pretos e brilhantes de forma bizarra. E começou a falar em hindu com o oriental. “Oi... o que está fazendo nesta casa?”. Cristiano preparou-se para gastar todo o seu malaiala – dialeto da região de Kerala.

- Oi... esta casa não é da família Banerjee? - perguntou o visitante. - todas as vezes que apareci aqui sempre fui recebido pelo clã.
- Ah, os Banerjee! - exclamou o gordo, abrindo o sorriso. - eles não moram aqui há um bom tempo, mais ou menos 5 anos. Como o senhor apareceu aqui... é estrangeiro.
- Sim, vim do Brasil – disse o nissei. - Embora não pareça, faço parte da família. Sabe onde moram?
- Sei sim, deixe-me ver aqui no meu bloco – respondeu o gordo, que puxou um caderno pequeno em espiral e verificou o nome da família a partir das inciais. Enquanto fazia isto de forma absurdamente lerda Cristiano observava o local, se movia em direção à janela, para ver a rua, ver se não passava de um sonho, se aqueles tuk-tuks se assemelhavam a hologramas ou coisa parecida. Não eram. Seu corpo tremia, ainda sofria uma sensação esquisita, novamente pensou que tivesse perdido muito tempo adormecido. O homem o chamou e disse: - Eles estão morando a 5 quarteirões daqui. Quer que eu te leve?
- Claro.

Cristiano aos poucos conseguia recobrar todos os seus movimentos. O gordo colocou o visitante eatrás de seu tuk tuk e ligou o veículo. Logo após dera um impulso tão violento que quase jogou Cristiano no chão da rua. E eles já trombavam com os demais tuk tuks e pessoas que não respeitavam os sinais de trânsito – como se tivesse algum. Não obstante sua gordura o homem sabia manejar um tuk tuk como pouos. Na verdade, era “como muitos”, porque muita gente dirige esta mistura de moto+taxi+carro na Índia.

“Olha a casa deles aqui!”, exclamou o motô. Cristiano novamente sentiu-se nervoso, como se estivesse devendo alguma coisa à sua família. Mas, ele não estava. Na sua concepção, era o resto de sua família que devia alguma coisa para ele. Apesar de tudo o que ocorreu nas últimas horas ele ainda estava entalado com a suposta facada nas costas feita por Sidney. Teria de resolver as coisas com ele. Depois de descer do tuk tuk Cristiano agradeceu o homem – este deu pinote tão rápido quanto saiu da outra casa – e observou a outra casa, antes de entrar.

- Cristiano – disse alguém atrás dele. Cris virou-se e topou com Bijitha, trajando calça jeans, camisa multicolorida e os cabelos longos trançados. Ela sorriu para ele assim que deu de encontro com seus olhos. - O que está fazendo aqui, em Mumbai?
- O que tô fazendo aqui... - murmurou o nissei, com o corpo levemente inclinado. - Eu... eu tinha aparecido aqui para resolver aquele esquema, o esquema da minha cura, a cura da minha doença!
- Doença? - indagou a linda jovem. - Foi isso mesmo que você disse? Seu malaiala está certinho, você comeu ou trocou algumas palavras? Quer que eu te ajude?
- Não, eu tô totalmente certo no que disse – respondeu Cristiano. - Eu tinha vindo aqui para achar a cura da minha doença, Jesminder me deu uma luz, ela me indicou para uma mulher chamada Eihi, mora bem longe daqui, depois consegui me recuperar, ela me passou a cura da doença, e você estava sabendo disso. Eu voltei da casa dela pra cá porque certamente alguém me transportou. Não tava me sentindo bem, estava todo molenga, então naturalmente me levaram para.. para a casa antiga. Eu ainda estava meio perdido e um moço que encontrei lá dentro me indicou pra casa atual de vocês. Foi tudo isso o que aconteceu.
- Nossa, que coisa... - disse Bijitha, meio transtornada. - Eu sei que você apareceu aqui ontem, ontem mesmo, mas depois sumiu, não sei exatamente o que houve contigo. Mas.. lembro que você disse que iria para a tal casa da Eihi. Estava meio... mal.
- Eu estava mal? De que? - indagou ele, se alterando.
- Você estava meio ruim... parecia meio bobo... não podemos falar sobre esse assunto aqui, vamos para dentro – disse ela, andando com ele para o interior da casa. Clamou para si mesmo a aparição de Jesminder, pois Bijitha não significava nada perante os conhecimentos da mãe. Aparentemente, ela não estava, então teria de se contentar com as explicações guria, que pediu para que ele se sentasse.
- Por favor, vá direto ao ponto – disse ele, nervoso. - Por que eu estava muito bobo, meio bobo, alguma coisa assim? Me explica.
- Ora, você parecia estar drogado – disse ela.

Cristiano trincou os dentes em uma mordida raivosa. Cerrou os punhos. Sabia que teria que, a partir dali, travar um debate sobre quem estava certo naquele assunto. Bijitha notou a mudança de humor de seu visitante, mas pensou que não poderia fazer muita coisa além de chamar a polícia ou algo parecido. Ou se defender, mesmo que seja de forma falha. Mas notou que a ira do nissei diminuíra, enquanto ele abaixava a cabeça e controlava o bambear de suas pernas finas. Bijitha queria abraçá-lo, mas achou que não seria o momento apropriado. Arriscando seu pescocinho, a indiana chegou junto e tocou a mão dele. “Você estava com cheiro de álcool. Parece que tinha tomado umas garrafas... você nos visitou, mas depois sumiu, parecia bastante depressivo. A antes que pergunte, ninguém te dopou ou coisa parecida. Pelo menos, até onde eu sei”.

- Você não sabia que eu não ia passar a noite na casa antiga? - perguntou ele, fitando-a com um olhar penetrante.
- Não, sinceramente – respondeu ela. - Eu acabei de dizer, você sumiu. Ah, e não precisa falar em malaiala, eu entendo português, assim como todos da nossa família. Então, o que aconteceu foi isso.
- Foi o que realmente aconteceu?
- Foi! - respondeu ela, quase bradando. - Quer ir ao hospital fazer alguns exames? Você ainda não me parece muito bem... e sobre a doença...
- Sim, sobre a doença, é disso que quero falar – disse ele.
- Você não tem doença alguma – disparou a guria. - Nunca teve doença nenhuma. Digo, não o tipo de doença que você está pensando que tem. Acabou, nunca teve.
- Não, você não pode estar falando sério. Não pode – disse Cristiano, irrompendo de um salto da cama, voltando a se aborrecer. - É mentira – correu até a parede e começou a socá-la, machucando ainda mais os seus punhos. Chutou e tudo mais, até ser segurado por Bijitha, que, não obstante ra bem forte. Talvez mais forte que ele.
- Não faz isso, Cris. Tá se machucando todo – disse ela. - Fica calmo, eu vou chamar mamadi, ela precisa muito estar aqui nesse momento, não quebre nada e nem a si mesmo – foi quando ele tentou se controlar quando Bijitha ligou para Jesminder e passou (em malaiala) tudo o que estava acontecendo. Recebeu a resposta de que a mulher estaria perto em poucos minutos, mas recomendou uma coisa. - Você concorda em ir para o hospital comigo?
- Sim, para qualquer lugar, se eu estiver louco não mereço ficar solto por aí – respondeu ele, começando a chorar. Bijitha não aguardou as lágrimas de seu primo cair e o abraçou fortemente. Cristiano chorou e ainda assim teve consciência o suficiente para acariciar os cabelos e a nuca da menina.

Estava subjugado pelo desespero e pela tristeza. Ele já sabia que passaria por momentos como este novamente, momentos totalmente humanos, ele não era melhor que os outros, mas estas situações desconfortáveis sempre o perturbavam... como perturbaria qualquer outro humano. Agora, o caso da doença. Quer dizer que durante todo este tempo a doença em si não estava lá? Sofrera tanto para nada? Vivera em aflição para nada? Sendo tratado mais uma vez como um joguete do destino. Como reagiria em relação a isso? Além da raiva? A melhor coisa seria aceitar que era hipocondríaco nestes mais de 39 anos? Pensou logo se, se abraçara esta ilusão com tanto fervor durante todo este tempo ele tinha um problema psicológico sério. Se fragilizou ainda mais. Pensou ser ainda mais indigno de viver, de prosseguir com sua vida, que embora não fosse tão prazerosa, era uma vida. Entretanto, para ele não era. Sua vida terminaria quando o médico dissesse que sofrera de uma doença que sua mente inventara. Não teria Sidney, não teria Jesminder, não teria Laura, Elizabeth, Bom ou qualquer outra pessoa para acudi-lo.

Sua vida iria acabar.

Ambos chegaram a um hospital particular do bairro de Bandra, já pago por Bijitha. Cristiano era observado pelo resto dos pacientes, todos deslumbrados por seu semblante. Não disse nada a eles. Bijitha fez todo o trabalho, pedindo apenas para que o nissei preenchesse um formulário comprovando sua futura estada no hospital. Depois disso Bijitha e Cristiano presenciaram a chegada de um médico, um psicólogo indicado pela família Banerjee para cuidar do parente distante, em especial. “Pode ir com ele, juro que vou estar te esperando aqui, te juro”, disse a morena de longos cabelos, fitando-o com um olhar sincero. Cristiano rumou com o médico – um homem de cabelos curtos, óculos fundo de garrafa, baixo e de roupas brancas. “Não se preocupe, está em boas mãos”, disse o profissional.

Cristiano e o médico adentraram em uma sala. O nissei sentou em uma cadeira acolchoada, e respirou fundo. Chegava a hora de revelar tudo para o médico.

Jesminder chegou e encontrou Bijitha sentada na sala de espera. Perguntou o que aconteceu exatamente. “Ele está doente”, disse ela. “Inventou que sofre de uma doença”.

Cristiano demorou para se sentir à vontade. Ser jogado a um ser desconhecido para que contasse sobre sua situação. Bateram a porta, o médico foi verificar e Jesminder apareceu visivelmente preocupada. O nissei respirou fundo.

Hipocondria

A hipocondria, do grego hypo- (abaixo) e chondros (cartilagem do diafragma), também conhecida por nosomifalia, é um estado psíquico em que a pessoa tem crença infundada de se padecer de uma doença grave. Costuma vir associada a um medo irracional da morte, a uma obsessão com sintomas ou defeitos físicos irrelevantes, preocupação e auto-observação constante do corpo e até as vezes, à descrença nos diagnósticos médicos. Muitas vezes encarada como algo engraçado, a patologia é séria e prejudica a vida de pacientes e parentes
Um grande contingente de pessoas saudáveis do ponto de vista clínico e laboratorial recorre diariamente a hospitais, consultórios e prontos-socorros, sempre reclamando de doenças graves. Inconformados com médicos e exames que indicam a inexistência de qualquer problema de saúde, muitas dessas pessoas saem dali direto para a avaliação de outro profissional, na expectativa de encontrar o diagnóstico sobre o mal que supostamente os acomete. A procura será em vão e aí pode estar o indício de uma doença real, embora essa ainda não seja imaginada pelo paciente. Trata-se da hipocondria ou a ‘mania de doença’, como é mais conhecido o mal que se caracteriza pela supervalorização de sintomas corriqueiros e perfeitamente normais.
A hipocondria pode vir associada ao transtorno obsessivo compulsivo e à ansiedade.

Um hipocondríaco é um indivíduo que se preocupa em demasia com a possível presença de doença. Geralmente reconhecem a presença de sinais e sintomas das mais variadas patologias no seu próprio corpo, entrando por vezes em estados de pânico. É tido como um distúrbio psiquiátrico, necessitando muitas vezes de ajuda médica especializada. O hipocondríaco em muitos casos se sente melhor ao tomar uma série de remédios para se dopar, achando assim, estar livre das supostas doenças. Alguns relatam que ficam felizes ao tomar os remédios. Por vezes entra numa depressão profunda por pensar ter muitas doenças.
Muitos hipocondríacos descobrem métodos alternativos para curar ou amenizar as supostas doenças, que no seu caso funcionam, pois a doença é, na verdade, sintoma da hipocondria. Como é algo mental, qualquer coisa deduzida o seu cérebro é capaz de reproduzir, portanto se a "Hipocondria" deduzir que tal coisa irá melhorar ou agravar o seu estado de saúde, geralmente ocorre, porque a própria doença é criação de sua cabeça. Muitos ligam alguns acontecimentos como agravador ou causador da doenças, sendo que a maioria deles não faz nenhum sentido. por exemplo se um macaco der um salto mortal seu diafragma terá hipocardiloma ou até mesmo seu orgão genital terá condiloma acuminado.

Quer dizer que a doença que sofria era, definitivamente, nada mais que invenção de sua própria mente? E Sidney? Sidney não sofre do mesmo mal – embora passe por resultados totalmente diferentes - ? Ou ele é o único que tem a doença de verdade? Certamente era verdade, mas no caso de Cristiano, não passava de um mal alimentado dia após dia.

Ele podia transar e ejacular sem o menor problema. Fora escravo de sua própria “invenção” após o orgasmo, injetando uma dor de mentira que transformava-se em dor de verdade, promovendo uma avalanche verdadeira em seu corpo, o fazendo sofrer verdadeiramente. Por quase 40 anos. Por quase 40 anos sofrera como um porco na mão de uma doença de mentira. Por outro lado, livre desse inferno, poderia tentar – ao menos tentar – fazer sexo com Laura, mas sabia que não seria tão fácil assim. Antes, ele precisava ser assistido. Não assistido na hora do sexo, mas nas consultas. Sim, ele precisava se consultar, quando retornasse ao Brasil.
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